Ô “negão”, quanto é que você cobra pra lavar meu carro? Sobre classe media negra e ascensão social em Salvador (BA)*
Na última década, a mídia tem dado evidencia à expansão das camadas médias brasileiras e, nesse contexto, têm sido destacados negros com padrões de renda elevados, com formação educacional avançada e com marcada presença em espaços tradicionalmente reservados a certa elite econômica e cultural. Alguns ocupam postos estratégicos na sociedade e executam funções habitualmente exercidas por indivíduos brancos.
Na última década, a mídia tem dado evidencia à expansão das camadas médias brasileiras e, nesse contexto, têm sido destacados negros com padrões de renda elevados, com formação educacional avançada e com marcada presença em espaços tradicionalmente reservados a certa elite econômica e cultural. Alguns ocupam postos estratégicos na sociedade e executam funções habitualmente exercidas por indivíduos brancos.
A ascensão social dos negros no Brasil não é um fenômeno recente. As estatísticas oficiais mostram que cresceu o número dos que melhoraram sua posição na estratificação social, mas a quantidade dos que experimentaram essa mobilidade é ainda bastante reduzida.
No mercado de trabalho, essa realidade mostra a sua parte mais perversa, pois a eles são reservados os postos com remunerações mais baixas e mais desvalorizados das empresas, comprovando quão difícil é ultrapassar a “barreira da cor” para alcançar certos patamares na sociedade. Os que conseguem fornecem muitas lições de conquistas e histórias de ressentimentos, lutas e desafios. Muitos deles se revelam como casos únicos na trajetória de organizações tradicionais. Além disso, pouco se sabe sobre o que elas pensam e como agem. Torna-se necessário ampliar-se o conhecimento sobre como se desenvolvem essas carreiras profissionais, quais os caminhos trilhados, as dificuldades e os desafios enfrentados pelos seus protagonistas, sobretudo numa época em que vivenciamos um contexto de mudanças sociais no país com uma maior abertura da sociedade para a questão racial.
Neste texto, analiso experiências de ascensão social de profissionais negros que ocupam postos de alta gerência e direção em instituições públicas em Salvador, trazendo à tona o processo de mobilidade e a percepção de como a ascensão foi por eles vivenciada. A escolha da cidade do Salvador é significativa porque é a capital brasileira de maior proporção de afrodescendentes em sua população. Entretanto, os dados divulgados pelo IBGE referentes a 2010 revelam que, apenas 1% dos pretos e 4% dos pardos faziam parte do grupo de dirigentes e gerentes.
A administração pública, por ter critérios de ingresso presumidamente democráticos, exerce forte atração sobre a população afrodescendente em busca de emprego, mas observa-se que, quanto mais elevada a posição ou a visibilidade do cargo público, menor é a possibilidade de eles ocuparem esses cargos. Assim, o caráter “democrático” dos critérios de ingresso no serviço público não mostra equivalência na indicação para os denominados “cargos de confiança”.
A “escolha”, o ingresso no serviço público e a construção da carreira
Os profissionais cujos depoimentos serão analisados a seguir, ocupavam funções de prestígio e mando em Salvador(BA), em 2009, quando foram entrevistados. Seus nomes aqui são fictícios. Todos eles tinham ingressado no serviço público a partir de meados da década de 1970, um período em que, no Brasil, a economia crescia em ritmo acelerado e a indústria e o comércio varejista representavam as mais importantes vias de mobilidade social, mas essas não eram oportunidades que podiam ser aproveitadas por jovens negros, por enfrentarem dificuldades em razão de sua condição sociorracial.
Na indústria, por exemplo, o recrutamento em grande parte se dava com base em redes informais de relações, apoiando-se em entrevistas que, em função do preconceito racial vigente, tendiam a deixar esses jovens de fora das ocupações e dos postos mais valorizados. O comércio varejista, além de ser um ramo bastante competitivo, era difícil de ser implementado em vista do alto custo para a montagem de um negócio, que dependia, quase sempre, da obtenção de empréstimos bancários.
Restava a esses jovens a alternativa do serviço público. Aí o ingresso não requer experiência anterior de trabalho, nem redes informais de relações pessoais, o chamado “pistolão”. As vagas preenchidas por concursos permitem aos capacitados evitar a “desagradável” experiência das entrevistas, em que costuma levar-se em conta. a “boa aparência”, um critério subjetivo que, por princípio, os exclui das ocupações de maior prestígio e remuneração.
Um exemplo disso é o que aconteceu com a diretora-geral de um hospital público de Salvador. Quando, recém-formada em Medicina, pleiteou uma vaga de residência médica em um hospital privado, ela foi submetida a uma sabatina exaustiva, em que foram lançadas dúvidas sobre sua capacidade para ocupar a vaga. Ela assim nos relatou em sua entrevista:
Eu fui para a entrevista da residência médica no Hospital Espanhol, e o professor virou para mim e perguntou assim:
— A pessoa desse currículo é você mesma?
Respondi com uma pergunta:
— Por quê?”
Ele não respondeu, mas fez nova pergunta:
— Você fala inglês fluentemente?”
— Eu fiz o curso na ACBEU — respondi.
E ele então começou a fazer diversas outras perguntas sobre infectologia, sobre doença médica, sobre minha vida pessoal e até mesmo se eu teria condições de comprar livros e roupas, pois teria de me apresentar adequadamente num hospital privado.
O que ele queria me dizer com aquilo? Claro que entendi: “Você é negra, e vir para um hospital privado vai ser complicado”. Foi essa a tradução que eu fiz do olhar e da postura dele.
Quando eu saí da sala, todos os candidatos estranharam por eu ter ficado uma hora e 15 minutos na entrevista. Nenhum deles tinha passado por aquela sabatina. Todos tinham levado somente em torno de 15 minutos. A diferença é que eu era a única negra, e não tinha inserção no grupo. As outras pessoas já eram conhecidas, tinham familiares médicos e eram brancas. A diferença era essa.
Mas aconteceu que acertei 92% das questões da prova escrita, e o segundo lugar ficou com 64%. Acredito que, se eu tivesse acertado uns 70%, por exemplo, a diferença teria sido muito pequena para eles abrirem mão da segunda candidata. Eles dariam um jeitinho de aumentar os pontos dela na prova oral, na apreciação do currículo... Fariam qualquer coisa.
(Dra. Balbina, diretora-geral de hospital estadual)
O depoimento expõe uma dificuldade corrente enfrentada por muitos ao disputarem as posições valorizadas no mercado de trabalho: a desconfiança em sua capacidade profissional. Além disso, eles também não dispõem de suporte social a seu favor e terminam expostos às demonstrações de racismo tão comuns na sociedade brasileira. Diante disso, a opção pelo serviço público é convidativa e mostra-se relevante, na medida em que, para os provenientes quase sempre de famílias humildes e de precárias condições de escolarização, conseguir uma ocupação não manual representa uma forma de prestígio e distinção no meio pobre em que vivem. Significa também a materialização de um projeto de ascensão de suas famílias: conseguir um emprego estável para o filho ou ter um filho “doutor”.
Em dois outros depoimentos, foram relembrados episódios ocorridos no âmbito doméstico que impulsionaram a busca de uma forma de “vida diferente”:
Minha mãe e meu pai só tiveram dois filhos: eu e meu irmão. A minha mãe sempre fez a minha cabeça. De tanto sofrer trabalhando em casa de família, ela me dizia, muitas vezes, chorando à beira do fogão, da pia, do tanque, que sua filha não iria ser como ela. Teria uma vida diferente, iria estudar e ter um emprego fixo. Ela dizia isso chorando pelas humilhações e por tudo o mais que ela passava. Fez até uma promessa para que com a filha dela fosse diferente. Então, ela me criou no sentido de que eu tinha de buscar um emprego seguro, tinha de estudar e me fazer na vida. A gente tinha dificuldades financeiras, mas ela sempre se virava para comprar o material escolar, para pagar o transporte. Tirava da comida, esticava, fazia render o dinheiro pouco para me manter na escola. Ela morreu quando eu tinha 15 anos, mas eu sempre fui boa aluna, e isso foi a minha salvação. Meu único irmão até hoje nunca trabalhou com carteira assinada e se sustenta “fazendo bicos”. (Dra. Ana Meire, superintendente em instituição pública federal)
Desde o primeiro momento, eu entendi que alguma porta só se abriria para mim no concurso público. Minha mãe sempre mostrava a importância de ter um trabalho seguro.
Algumas pessoas do meu bairro diziam:
— Esses concursos são todos de carta marcada, por isso eu nem vou tentar...
Mas eu sempre pensava:
— Eu posso ficar prejudicada na hora da classificação, na hora da análise subjetiva de títulos ou de uma entrevista, mas, numa prova objetiva, eu vou fazer a minha parte, e depois a gente vai ver o que vai dar.
Conquistei todos os postos por concurso público, até a seleção para o estágio.
(Dra. Maridete, corregedora-chefe de polícia)
Depoimentos como esses revelam a importância de trabalhar no serviço público para indivíduos de famílias humildes com rendas instáveis. Fornecem também elementos para que se possa questionar se a escolha pelo serviço público seria mesmo uma opção. Em que horizonte essa escolha aparece? Com que outras escolhas seria confrontada? Qual o grau de liberdade da opção? Além disso, o que representa para uma família de origem negra e pobre ter entre seus membros um funcionário público?
Alguns depoimentos deixam bem claro que não se trata de uma escolha de fato, mas de uma alternativa para realizar um projeto de ascensão, de superação e de diferenciação da condição de origem, com o consequente rompimento com uma história de exclusão de classe, de raça e, muitas vezes, de gênero.
Chama a atenção o fato de que a valorização do trabalho no serviço público se faz primeiramente em termos da segurança e da estabilidade, parecendo guardar forte relação com as vivências históricas de dificuldades enfrentadas pelas pessoas de origem negra no seu entorno de socialização primária. É o que mostra o depoimento a seguir:
Eu acho que o primeiro pensamento em relação a esse emprego foi a estabilidade. Meu pai tinha um armazenzinho lá no interior e veio à falência. A própria situação em que o meu pai ficou por não ter um emprego fixo foi um exemplo terrível de instabilidade. Ficamos numa situação complicada. Aí eu nem pensei muitas vezes quando surgiu a oportunidade de ingressar no serviço público. Vi a porta aberta e entrei. A ideia era que o serviço público era onde eu podia ir mais adiante.
(Dr. Roque, diretor de unidade universitária)
A diferença para esses novos postulantes à esfera pública está no fato de possuírem uma formação educacional mais avançada. Eles chegam com algum poder de barganha expresso na posse de um ou mais diplomas que os credencia a atuar em cargos especializados de técnicos de nível superior, tais como: analista, auditor, professor, médico, advogado, etc. Além disso, já possuem ideias relativamente claras dos próprios deveres e direitos trabalhistas e uma maior sensibilidade para linguagens e comportamentos associados às posições de mando no Brasil.
Num primeiro momento, a vaga conquistada representa a possibilidade de melhoria de qualidade de vida e a esperança de dar continuidade aos estudos. Significa ainda a possibilidade de progredir na carreira em condições mais satisfatórias do que nas empresas privadas. Contudo, essa progressão não é conseguida de modo muito simples. Ultrapassada a barreira do ingresso, são enfrentadas outras barreiras mais difíceis de transpor, submetendo essas pessoas a uma penosa etapa de socialização, com privações de prazeres de várias ordens.
Os informantes ouvidos estavam à margem das mencionadas redes de contato facilitadoras do processo de ascensão na carreira. Foi o que alguns revelaram nas entrevistas:
Na minha família, eu não tenho referência de pessoas ilustres, não tenho parentes políticos, nem mesmo parentes distantes. Também não tenho sobrenome importante, nem sou mulher de corpo exuberante que possa vender a imagem. E ainda que tivesse, eu não venderia. Eu tinha um único caminho: mostrar o meu trabalho e ganhar as pessoas com ele.
(Dra. Norma, diretora de instituição de ensino superior)
Na minha corporação, toda vez que alguém tivesse de escolher, sem considerar méritos acadêmicos ou méritos outros, eu nunca seria o escolhido. Disso aí eu não tenho dúvida. Se você quiser exemplos, são tantos que eu não me arriscaria a dar um. Toda vez que alguma escolha foi feita e que não foi considerado o mérito para definir quem era o quê, eu fui preterido. E foram várias as vezes. Eu não tinha padrinhos...
(Cel. Renato, comandante de corporação militar)
Com efeito, os negros podem ingressar no serviço público em “igualdade de condições”, porém, já na seleção, carregam consigo uma desvantagem que se mostra crônica em relação a eles: a de ingressar nas instituições com o aporte de reduzido capital simbólico. Em relação à maioria dos seus concorrentes, que são brancos e de classe média, eles não tiveram condições de aprender línguas, de viajar ao exterior, por exemplo; e, certamente, assistiram menos a filmes.
Outro ponto a se ponderar é que os cargos diretivos no serviço público não são preenchidos por critérios de mérito, mas são cargos “de confiança”. Geralmente, no acesso a esses cargos, a competência ou a experiência ficam em segundo plano, conferindo-se maior importância às relações sociais, ou seja, aos vínculos de amizade com pessoas que têm poder de decisão, ou ao apadrinhamento político. Ora, geralmente, indivíduos de origem humilde têm pouca ou nenhuma convivência com pessoas influentes que possam facilitar-lhes o caminho da ascensão. Esse elemento tende a influir negativamente na construção da carreira, pois têm contra si a falta de um capital social adequado, configurado na ausência dessas redes de relações, isto é, eles não têm essa “confiança”.
Por maior que seja a aculturação ou o conformismo às práticas e aos valores culturais dos modelos (brancos e ricos), as características físicas externas os distingue, de maneira indelével, como racial e socialmente “diferentes”. Isso os predispõe a se tornarem alvos de atitudes racistas ou objeto de práticas discriminatórias na instituição. No Brasil, os negros herdaram um fato histórico do qual não podem fugir: o passado reporta-se, no presente, em representações ou ideologias que ganham um caráter mitológico e terminam sendo usadas, como combustível subjetivo, para marcar posturas de preconceito racial que, no imaginário coletivo, institucionalizam e legitimam o lugar de poder que deveria ser ocupado pelo branco.
Esse preconceito, de forma disfarçada ou subliminar, é claramente percebido por esses indivíduos ao longo do seu percurso de ascensão. Em consequência disso, sempre lembrados de sua condição sociorracial e de sua origem humilde, no plano das relações interpessoais eles procuram omitir ou mascarar o que os define socialmente. Exageram no esmero da aparência, rebuscam o modo de falar e, até mesmo afastam-se dos “espaços negros” e de grupos referenciais de origem. Distanciam-se, também, dos movimentos sociais reivindicatórios, omitem informações sobre seu passado de dificuldades, para evitar a associação de sua imagem aos estigmas e estereótipos de pobreza e inferioridade. Tudo isso interfere na constituição de suas identidades, diluindo suas marcas sociais.
Além disso, costumam lançar mão de recursos ou estratégias diversas para minimizar possíveis resistências ou dar maior visibilidade a ações individuais e até para que se percebam aceitos ou incorporados nas relações de poder.
A superdedicação ao trabalho é um recurso bastante utilizado. Movidos pela crença de que o sucesso se deve ao mérito pessoal, a ser conseguido depois de grandes esforços e sacrifícios, o trabalho exaustivo aparece como ingrediente central na estratégia de ascensão desses indivíduos, num deliberado esforço de chamar a atenção de seus superiores para si e para suas jornadas extenuantes de trabalho. Assumem que é necessário perfeccionismo no desempenho de suas atividades, esmero na aparência pessoal, rigor na moralidade da conduta, um alto comprometimento com a instituição, mesmo em sacrifício da vida familiar e da convivência com os amigos.
O depoimento a seguir evidencia como a superdedicação cumpre função importante no projeto individual de ascensão:
Como eu não tinha padrinho político, a única forma que eu tinha era chamar a atenção para que dissessem:
— Pô! Esse cara trabalha pra caramba! Então, ele merece ser promovido.
Eu me tornei um autodidata em tudo aquilo que eu fazia, pois percebi que, se eu fosse fazer um curso fora da corporação, ia chamar sobre mim a atenção de forma contrária. Naquela época, havia um conceito na oficialidade superior de que os oficiais que faziam outros cursos em universidades estavam apenas fazendo da corporação uma escada para obter sucesso lá fora. Havia esse preconceito em relação ao pessoal que estudava. Mas também, se alguém é dedicado, consegue promoção. Então, eu procurei seguir à risca as normas culturais e pensava:
— Minha estratégia para ser promovido tinha de ser essa: eu tenho de me fazer sozinho, eu tenho de ser um autodidata, tenho de ler livros de vários assuntos para poder preparar os projetos. Além disso, eu vou, trabalho e, se for preciso, passo do horário. Com isso eu logo vou chamar a atenção do meu chefe, que, como todo comandante, sempre sai mais tarde.
Os oficiais do meu grupo eram meio dispersos. Então, eu me dediquei mais do que os outros. Desde que assumi o primeiro posto na corporação, eu saio de casa de manhã cedo e nunca volto antes das 10 horas da noite. Eu nunca saía antes do comandante geral. Toda vez que ele passava, ele via a luz acesa e procurava saber quem estava lá dentro. Era eu. Toda vez que o comandante me procurava, me encontrava no trabalho. Essa foi a minha estratégia para ser promovido. E eu me acostumei realmente a me dedicar inteiramente ao trabalho na corporação.
Até hoje, se eu chegar em casa antes das 10 horas da noite, meu filho me pergunta se eu estou doente...
(Cel. Irineu, comandante de corporação militar)
Como se pode observar, esse militar tem consciência do esforço a mais que despendia para se sobrepor ao “apadrinhamento” e dos embaraços que a superdedicação causara à sua vida pessoal, mas seguiu em frente, procurando tornar-se um “padrão aceitável”. Como os “fracos” não podem ter defeitos, ele não podia errar e devia se superar sempre, buscando ser “o melhor”.
Em situação de competição com indivíduos brancos e de classe “superior”, um desembargador entrevistado mostrou ter tido essa mesma consciência:
O negro tem de buscar sempre um diferencial maior, um destaque, porque, se ele estiver nas mesmas condições dos outros, dificilmente será indicado para um posto mais alto. Mas, se tiver um diferencial muito grande, e esse diferencial tem de ser muito grande, só assim ele tem probabilidade de ser indicado. Sempre foi assim comigo.
(Dr. Geraldo, desembargador)
O investimento educacional em cursos de especialização ou em uma nova graduação, geralmente com recursos próprios, configura-se como uma das estratégias mais utilizadas para conseguirem tal diferencial. Em razão disso, constroem currículos notáveis, com variada gama de cursos, potencializando as chances de ascensão às posições mais valorizadas numa instituição.
Outra estratégia é procurar manter comportamentos de discrição e modéstia habilmente calculados, investindo no relacionamento interpessoal menos conflituoso, evitando, sobremaneira, os desafetos e as situações passíveis de veladas manifestações de racismo. É o que mostram os depoimentos de dois comandantes de corporação militar:
Uma posição modesta de mostrar que eu não aspirava muito, na verdade, era parte de uma estratégia. Estratégia como? Estratégia de não despertar a atenção de ninguém para o que eu estava almejando, pois, quando percebessem, eu já tinha conseguido. Era também o medo intrínseco de esbarrar nos limites da própria capacidade e de não conseguir, ou o temor de que as oportunidades se fechassem. Essa coisa funcionava assim. É um comportamento que a gente que é negro aprende a adotar para não despertar reações e para fazer parte dos grupos.
(Cel. Renato, comandante de corporação militar)
Meus companheiros não me viam como concorrente para disputar vagas na promoção. Eles até brigavam entre si. Um pedia ao deputado fulano de tal, o outro pedia ao deputado cicrano para ver quem é que tinha mais peso político. Eu trabalhava na área de planejamento e tinha uma visão de tudo. Eu percebi que a única forma de enfrentar a minha falta de apadrinhamento era me empenhar o máximo para chamar a atenção sobre mim, sem criar qualquer tipo de aresta, sem criar inimigos.
(Cel. Irineu, comandante de corporação militar)
Desenrola-se, assim, um processo complexo que se materializa na presença atomizada desses indivíduos na alta hierarquia das instituições em que atuam. Faltam-lhes pares raciais para compartilhar dificuldades especificas e, diante da situação isolada, desenvolvem uma espécie de sentimento de fragilidade e passam a adotar comportamentos de extremada prudência em suas relações profissionais.
A consciência e a experiência do racismo na prática
A consciência do racismo e a experiência da discriminação racial aproxima as histórias dos indivíduos que ascendem socialmente produzindo situações nas quais, para ser aceito pelo outro, desde muito cedo essas pessoas aprendem a negar a si mesmas. Um dado relevante é que a percepção generalizada das pessoas com relação à cor não se altera, mesmo com a ascensão social de um indivíduo, o que demonstra que, na sociedade brasileira, há uma representação de “lugares” estabelecidos para os negros e, sobretudo, que o negro que ascende socialmente está saindo desses “lugares”.
Com efeito, a sobrerrepresentação desses indivíduos em determinadas ocupações tende a criar uma referência de que aquela ocupação é tipicamente negra, a exemplo da associação entre ser negro e exercer uma ocupação subalterna. Essa associação entre cor e ocupação faz com que muitas dessas pessoas já tenham sido abordadas como empregadas domésticas em suas próprias residências, ou confundidas com serviçais do condomínio em que residem e em diversos outras situações.
Um depoente citou um fato ocorrido com um colega seu:
Ele já era coronel e estava no condomínio lavando o carro dele com o maior capricho, quando um cara branco chegou e falou:
— Ô negão, quanto é que você cobra pra lavar meu carro?
Ele simplesmente respondeu:
— Pode trazer amanhã.
No dia seguinte, o cara trouxe o carro e ficou apavorado, pois o coronel o recebeu fardado, com as medalhas no peito. (risos)
(Cel. Humberto, comandante de corporação militar)
Esse depoimento torna-se instigante não apenas pela situação constrangedora vivenciada por ambos, mas pela forma como foi apresentada. Instado a falar sobre suas experiências em relação ao preconceito racial, inicialmente, o coronel declarou ter dificuldades de lembrar uma situação pessoal, mas que relataria uma situação “engraçada” ocorrida com um seu colega e que ele “sempre gostava de relembrar”. Esse comportamento se mostrou recorrente nos diversos depoimentos, fazendo supor que essa seja uma estratégia utilizada pelos sujeitos que, agindo assim, acreditam falar mais abertamente sobre o assunto “sem que se exponham”.
Lidar com o preconceito passa, antes de tudo, pela percepção que os indivíduos têm daquela situação e da forma possível de contorná-la ou revertê-la. O processo de reconhecimento de ter vivido uma situação de preconceito não se mostra um exercício fácil para o indivíduo que ascende socialmente, na medida em que produz um movimento em que ele tem de se deslocar para fora, rememorar uma situação dolorosa que já viveu, interpretá-la e narrá-la para outra pessoa. Isso, sem dúvida, é motivo de sofrimento, sendo compreensível que, em questões relacionadas a preconceito, muitas dessas pessoas tenham um “não” como resposta imediata, informando não tê-lo presente em sua trajetória ou, ainda, minimizando sua ocorrência como sendo uma simples dificuldade encontrada pelo caminho, tratando como um fato circunstancial.
Ainda que não expressem a verdadeira realidade no que tange ao seu quantitativo, algumas situações de racismo são veiculadas na mídia, revelando fatos que, em sua quase totalidade, ocorrem fora do âmbito profissional, especialmente nas relações de consumo ou com as forças policiais. Não são poucos os casos de negros de boas condições sociais que afirmam ter sido alvo de suspeitas por forças policiais, sem qualquer motivo, por estarem dentro de um bom carro ou ostentando sinais de riqueza. Sabe-se, por exemplo, que Dr. Edvaldo Brito, quando Secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura de São Paulo, conseguiu o feito de ser parado quatro vezes pela polícia depois que assumiu o cargo. O pitoresco é ter acontecido justamente com ele, um professor de Direito, empresário e secretário da maior prefeitura do país. Em todas as vezes, ele estava em carro oficial, com segurança e motorista, também negros, o que dá a entender que, paradoxalmente, quanto maior é a ascensão econômica ou cultural dos negros, mais eles estão expostos à discriminação. Essa discriminação é de um tipo diferente daquela que atinge os de condição social “mais baixa”: sempre mais sutil, quase imperceptível para alguns, mas nem tanto para os sujeitos em questão.
Um aspecto que se mostra recorrente são as expressões de surpresa, em determinados ambientes, quando são anunciadas como ocupantes de cargos de alto gerenciamento, ocasião em que se defrontam com uma tensão subjacente a esses referenciais, promovendo situações constrangedoras, como as relatadas a seguir:
Quando eu já tinha dezoito anos no cargo de juíza federal, prestes a passar para desembargadora, eu fui ao Palácio do Planalto para falar com umas autoridades. Ao chegar lá, o rapaz que trabalhava na guarita de identificação, no computador, conseguiu escrever na ficha o meu nome, CPF e RG, mas não conseguia colocar que a minha profissão era juíza federal. Ele demorou muito, e eu na fila esperando... A outra fila já tinha andado bastante, e ele ali preenchendo meus dados sem sair daquilo, até que eu perguntei:
— Meu irmão o que é que está acontecendo?
E ele:
— A senhora é oficial de justiça, não é? — ou seja, na cabeça dele tinha alguma coisa errada, eu não podia ser juíza federal!
Eu disse para ele:
— Eu poderia ser oficial de justiça, é uma profissão digna, honrada. Eu tenho muitos amigos oficiais, mas, no entanto, eu preferi ser juíza federal; juíza federal exatamente como está escrito aí nessa carteira que está em sua mão. Essa carteira bem grande com esse enorme brasão da República.
Ele não concebia que eu pudesse ser juíza federal...
(Dra. Vanderlina, juíza federal)
Eu vivi uma situação em que um senhor, ao entrar na minha sala para ser atendido, dirigiu-se assim para mim:
— Minha filha, eu vim aqui falar com o delegado.
Eu disse secamente:
— Pode dizer!
E ele repetiu:
— Eu vim falar com o delegado!
E eu já respondi com impaciência:
— Pode dizer. Eu sou a delegada!
Ele reagiu com ar de surpresa:
— Você?
Com isso, ele não precisava dizer mais nada... Eu sabia que ele esperava e certamente preferia encontrar uma pessoa com outro perfil, e minha presença o desapontou. Só que tem horas que isso cansa mesmo!
(Dra. Josemilda, delegada titular de polícia)
Não faz muito tempo, eu estava aqui vestido com aquele uniforme camuflado de guerra que não exibe o posto, só tem o nome da pessoa e o tipo sanguíneo. Chegaram alguns militares de fora, acompanhados de alguns civis, para falar com o comandante e vieram em direção das pessoas que não eram negras, esperando achar ali o comandante. Eu fiquei observando. Meio desconcertado, o oficial para quem ele já estava se dirigindo apontou na minha direção:
— É aquele ali.
Do meu lado, estavam outros dois oficiais de patente mais baixa do que a minha, mas que eram brancos. E, mais uma vez, eles se dirigiram a um deles, e o outro oficial branco, apontando para mim, informou:
— Não, não é esse não. Ele é quem é o coronel.
Eles ficaram sem graça, pois esperavam talvez encontrar um comandante com um outro tipo, o tipo ao qual já estavam acostumados e, de repente, deram de cara com um negro. Isso é bom para eles irem aceitando essas coisas, para poder ir se quebrando essa coisa cultural que fica na cabeça das pessoas.
(Cel. Renato, comandante de corporação militar)
Se você me perguntasse assim:
— Como diretora desse hospital, você já enfrentou preconceito?
Eu lhe responderia:
— Lógico! Desde o momento em que a diretora anterior me indicou para o cargo, ou o Secretário da Saúde me conheceu. Como negra, eu sempre tenho de provar. Esse é o sentimento que carrego, que eu sempre tenho de estar provando que sou capaz. Não basta ser bom, o negro tem de provar que é bom.
Um dia, cheguei a uma emissora de televisão para uma entrevista, me identifiquei e sentei na sala de espera. O repórter chegou na sala procurando saber se Dra. Balbina já tinha chegado. Ele viu que só eu estava lá sentada. Depois de mostrarem que eu estava ali, ele ainda veio me perguntar se eu era a Dra. Balbina. Deu ainda para notar no seu olhar cera apreensão, como se estivesse questionando: “Será que essa negra sabe falar? Será que essa negra não está num cargo decorativo? Será que ela tem mesmo capacidade?”
Você até poderia me dizer que eu estava com o pensamento voltado para isso, mas, quem está na situação, sabe identificar exatamente o que está se passando, porque a postura muda a partir do momento em que você abre a boca. Quando a gente começa a falar, as pessoas começam a relaxar e a pensar: “ Ah! Vai valer a pena sim”.
E a gente nota que, no final, a postura já é outra, porque, antes de me conhecerem, eles desconfiaram de minha capacidade.
(Dra. Balbina, diretora-geral de hospital público estadual)
Os depoimentos deixam entrever práticas, sentimentos e resistências cuja compreensão permitem dimensionar a complexidade do processo. No Brasil, decorrido mais de um século de sua integração ao trabalho livre, o negro ainda é visto com estranheza e certo incômodo em determinadas posições na sociedade brasileira, provocando constrangimentos.
Em outro depoimento, um entrevistado afirmou:
Tem horas que isso cansa mesmo. São coisas que a gente sente no olhar ou na forma como aquela pessoa nos trata, ou nos observa. Antes me causava certa frustração interior por estar vivenciando isso. Dava sempre uma raiva, uma indignação! Eu ficava meio triste, abatido com isso. Hoje eu diria que quase não me abalo muito, mas isso me impacienta. Às vezes, eu chego até a achar graça com os impactos...
(Dr. Alberto, superintendente de instituição pública)
O discurso de que o preconceito no Brasil é basicamente de classe sempre teve um peso significativo na compreensão das relações raciais. No presente, tem perdido espaço para uma visão diferente: o reconhecimento de que as pessoas negras são alvo de preconceito racial e que não é a origem, tampouco a situação de classe, mas é a aparência, o dado “racializado” que gera mais preconceito.
Em relação ao negro que ascende socialmente, a peculiaridade vem do fato de que ele sai de um lugar de subalternidade comum à maioria de seus pares, para um lugar no qual sua presença é pouco comum. Torna-se exposto a certo tipo de preconceito que se manifesta como “brincadeiras”, sob a forma de piadas que estereotipam a figura do negro como também nas surpresas e nos constrangimentos que a sua presença ainda causa em certos espaços tradicionalmente reservados à classe média. Não raramente, essas pessoas percebem-se observadas com curiosidade quando, por exemplo, participam de atividades sociais nesses ambientes.
No que tange às manifestações do preconceito racial, ficou evidenciado que não há uma situação determinada para acontecerem; da mesma forma, fica descartada a possibilidade de que elas nunca ocorram. Diante disso, salientam-se comportamentos que denotam receios, atitudes de prudência ou mesmo atitudes premonitórias de forma mais ou menos conscientes relacionadas a possíveis atos preconceituosos — como se os sujeitos estivessem sempre “preparados” para lidar com esse tipo de situação, uma preparação para não serem surpreendidos, caso venha a acontecer. Assim, evitam estar presentes em locais de maior probabilidade de que essas manifestações resvalem para um tratamento ofensivo.
Mesmo que a questão do preconceito se apresente como um dado do cotidiano dessas pessoas, não há indicações de que elas pensem nessa possibilidade o tempo todo, ou que esse cotidiano seja marcado por uma permanente rotina de preconceitos. No ambiente profissional, os diferentes relatos dão conta de que esses são mais frequentes durante a construção da carreira do que com o status já consolidado.
A ascensão social vista por quem a vivenciou
A ascensão social dos que realizaram esse movimento perfaz um percurso difícil, mas é referida como um fato positivo, que confere uma situação econômica e social privilegiada em relação à grande maioria de seus pares raciais. Eles “fogem ao destino” e, como tal, têm a oportunidade de retribuir o investimento canalizado pela família em seu proveito: promovem a melhoria das condições de vida dos pais, oferecem ajuda aos parentes mais pobres assim como melhor qualidade de vida e maior capacitação educacional para si e para os filhos.
A ascensão também confere valores simbólicos ao grupo parental, ainda que certas subjetividades se apresentem no contexto da relação com o núcleo familiar e de amigos na origem, pontuando conflitos pessoais diante do desnível social entre eles. Incômodos e constrangimentos se mostram comuns, como revelou Dra. Vanderlina, ao comentar que vivencia “um sentimento que eu não diria que é de culpa, quando vejo que, enquanto eu avanço, está todo o resto lá... parado: irmãos, tias, primas”. Trata-se de um conflito dramático, cujo desconforto parece encontrar alívio ou compensação na ajuda econômica que a mobilidade permite que eles prestem ao grupo familiar.
Os indicadores apontam um futuro promissor
A mobilidade social confere maior prestígio, segurança, aumento da autoestima e, principalmente, condições de oferecer melhor qualidade de vida aos seus familiares. Porém, mesmo com as possibilidades abertas, o peso das marcas raciais ainda se faz sentir intensamente pelos que as carregam. Ainda que esse peso tenha se reduzido, se comparado ao carregado por gerações anteriores, ele continua a ser um fardo doloroso para os que desafiam “sair do seu lugar”.
A experiência comprova que a discriminação racial ultrapassa os limites da pobreza, ou seja, se esta contribui para intimidá-los, o seu desaparecimento não elimina a discriminação. Manifestações de racismo brasileiro continuam a produzir e a naturalizar desigualdades que penalizam todo esse grupo racial.
É dramático conceber que novas gerações de brancos e negros também prosseguirão com essa diferença no mercado de trabalho, mesmo que alguns indicadores apontem para um futuro promissor no sentido de o Brasil ser um país com mais igualdade. Em relação ao passado, há um número maior de pessoas afirmando-se como negras, com um aumento na autoestima desse segmento da população. Intensificaram-se as pressões para ampliação da cidadania com o movimento social negro mostrando-se cada vez mais ativo e com uma pauta de reivindicações mais organizada, especialmente o movimento de estudantes negros.
Desde que o primeiro aluno negro ingressou, há dez anos, em uma universidade pública brasileira pelo sistema de cotas, vários já estão empregados, e para uma grande quantidade deles vem aumentando a oferta qualificada de emprego, facilitando-lhes a entrada no mercado de trabalho.
Há expectativas de melhoras com os programas de inclusão e ações afirmativas, e pode-se comprovar, na atualidade, uma maior visibilidade da presença de personalidades negras em diversos setores da sociedade brasileira, transmitindo uma mensagem de que é possível ter-se um horizonte mais largo do que o que se tinha no passado.
Ser negro em ascensão social significa romper muitas barreiras em uma sociedade na qual a maioria deles tem baixa escolaridade, ocupa funções de baixa remuneração e vive em condições de pobreza muito grandes. Sair desses círculos representa uma forma de resistência muito fatigante. Comporta longos caminhos, muitas batalhas, renovados esforços de homens e mulheres para possibilitar a educação de seus filhos, atravessando gerações e gerações sem sequer o direito de sonhar em entrar na universidade ou contrariar a tendência de trajetórias profissionais iniciadas pelos seus antepassados.
Sem sombra de dúvida, o empenho individual de cada um é fundamental para alcançar as posições almejadas. Contudo, embora alguns justifiquem seus êxitos pelo próprio esforço, o resultado final desses percursos é sempre fruto de uma luta coletiva.
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