Ó Neto! Diz lá as tuas frases bonitas!

Setembro é o mês que vai trazer à Terra angolana o lavar das cinzas das últimas queimadas do cacimbo, e atapetar de verde as anharas e os campos, com seus capins altivos, e as lavras trabalhadas sob as primeiras chuvas; Setembro é o mês que vai alagar as chanas do Leste, as mulolas do Cunene e do Cuando Cubango, e trazer às árvores o resplendor das suas copas, destinadas a sombra, fotossíntese, e alimento dos viandantes, por suas folhas, ou sápidos e dadivosos frutos.

Este mês de Setembro, deste ou de qualquer ano havido ou a haver, é mês dúplice na memória afectiva do Povo e na História de Angola, como país livre, independente, soberano, e em Paz.

Setembro, em Angola − país e gente, onde, e para quem, o vocabulário da Vida toma caminhos que só a voz na sua prática ancestral sabe como revolver a terra e adubar o chão para a fulguração da Palavra num espanto renovado de encantamento e Poema − em Angola, repito, Setembro quer significar também nascimento e morte; quer (e é) mês de Homenagem. Não por acaso, o dia 17 de Setembro é hoje o Dia do Herói Nacional, em Homenagem por um nome, que a todos aglutina: Dr. António Agostinho Neto (Kaxikane, Icolo e Bengo, 17 de Setembro de 1922 – Moscovo, 10 de Setembro de 1979).

E tanto quanto o poeta, cuja obra alicerçada numa Ternura insubmissa se construiu para uma identidade nacionalista angolana, ou o político que o mundo aprendeu a respeitar, quero aqui sublinhar aquela disponibilidade, atenta de dádiva e lucidez, com que sempre Agostinho Neto se fez acompanhar no seu estímulo à criação literária e artística dos seus pares, numa visão que ia muito para além das fronteiras de Angola.

Em 1948, ainda estudante de medicina em Lisboa, e na sequência da criação do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (cujo lema era «Vamos descobrir Angola!»), Agostinho Neto fez uma intervenção na Casa da África Portuguesa, na qual não só acentuou a importância vital deste movimento para Angola e para o seu futuro como Estado-Nação, como o tomou para exemplo e incentivo a seguir na diáspora dos estudantes africanos de então, o que se viria a concretizar anos mais tarde na Casa dos Estudantes do Império: «Recebi de Luanda uma carta do amigo Viriato da Cruz, talvez vocês tenham ouvido falar nele. É um dos nossos poetas. Pois bem, comunica-me que organizaram lá um centro cultural. (...) Escreve ele que vão procurar fazer um estudo da história africana, da arte popular, vão escrever contos e poemas, imprimi-los e depois vender os livros, e, com o dinheiro que conseguirem, pretendem ajudar os escritores e poetas talentosos necessitados. Parece que poderíamos fazer o mesmo aqui, em Lisboa. Temos, com efeito, muitas pessoas que sabem compor versos e escrever contos não só sobre a vida estudantil, mas também sobre as nossas terras, sobre Angola, Moçambique, as Ilhas de Cabo Verde e São Tomé.»

Essa preocupação atenta e sempre empenhada na criação e sedimentação de uma literatura genuinamente angolana, que jamais o abandonou, levou-o em Agosto de 1959, em uma outra palestra sobre a poesia angolana, proferida na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, a exortar os poetas angolanos a restaurarem a tradição oral africana, incorporando-a nas suas obras, por forma a se aliarem tradição e modernidade num modo mais perene e exultante da própria criação literária.

Sobre Agostinho Neto e o poder encantatório do seu discurso, respigo (em dupla homenagem), da crónica “Samora e a literatura”, de Luís Carlos Patraquim, estas palavras: «Lembro-me em difusa memória, (…) onde se dispersam agora as imagens inteiras de uma Utopia maior que soube sonhar e dizer, do prazer sincero que [Samora] tão bem soube exprimir ante as palavras de Agostinho Neto aquando da sua visita oficial a Moçambique. Samora aplaudiu em pleno discurso de Estado a “maneira literária” como o poeta-presidente angolano saudava Maputo e o povo moçambicano. E não se conteve em exclamar: “Isto é mesmo teu, ó Neto! Diz lá as tuas frases bonitas!”»
Mês da Poesia Angolana, assim humildemente sugiro que venha um dia a ser decretado oficialmente este mês de Setembro. Porque mês propício entre todos para o acto de reaver a Palavra que nos seja aquele rosto e melodia que nos distingam, angolanamente, perante o destino do mundo, e nos catapultem para o nosso ser mais límpido e verdadeiro.

*Zetho Cunha Gonçalves é escritor angolano.

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