Kate Hama: um general à escrita nos seus labirintos
Temos em Angola fórmulas de tratamento, de carinho e de respeito para nos saudarmos, e é por elas que começo:
– Ohosi ukulu! – é a fórmula, entre os Ovimbundu, com que uma pessoa comum saúda o seu chefe (a sua autoridade tradicional), acompanhando de aplausos a saudação, e que significa, literalmente, em português, “Saúdo-te, avô leão!”.
– Nakalunga! – responde o chefe. E esta palavra, em português, tanto significa “Grande água” (mar, imenso lago ou grande rio), como significa “Deus”, “céu” ou “morte”.
Entre pessoas de elevada posição social, a saudação restringe-se a uma única palavra:
– Ukulu! – que significa “Avô”.
Saudações e formalidades cumpridas, falemos agora de Nanu, pela voz dos ancestrais, que é a voz dos mitos e das lendas fundadoras.
Nanu significa “alto”, ou seja, a palavra que nomeia o planalto central de Angola, onde tradicionalmente habitam os Ovimbundu, a cuja cultura Kate Hama geneticamente pertence.
Molhada pelos Espíritos, eis a voz dos ancestrais:
Há muito tempo, quando os homens foram criados – funde nunde –, no Wambo havia leões soberbos e ferozes. Um dia, os homens, filhos de Ngana Nzambi (Deus), que criou também todos os animais da terra, chegaram à região Nanu. Ambiciosos, consideravam que o mundo lhes pertencia e que os animais deveriam viver exactamente onde eles, os homens, quisessem. Assim, os homens começaram a apoderar-se da região Nanu, mas os leões opuseram-se-lhes, conduzidos pelo mais possante de entre eles. A guerra estalou e, um a um, os homens foram sendo vencidos e mortos. Ficou apenas um, que fugiu. Este homem, não obstante as perseguições e esforços dos leões, escapou à morte e escondeu-se na floresta e na montanha. Um dia, esgotado pela fadiga, adormeceu. Um estranho ruído despertou-o e, de repente, viu que um enorme leão se aproximava. Disposto a morrer, pensou que os leões estavam com razão, dado que os homens tinham invadido o seu domínio e, por isso, mereciam o pior. Tremendo, fechou os olhos e esperou a morte. O leão aproximou-se lentamente e o homem sentia já o seu bafo. Surpreendido, verificou que não era um leão, mas uma leoa que o acariciava com a língua. Então, chorando, disse ao animal: “Estou só e vivo só. Peço-te que me não mates, pois sairei do teu país”. E a leoa respondeu: “Está tranquilo, não quero fazer-te mal. Pela minha parte, estou velha, sozinha, nenhum macho me quer. Não estou aqui para te matar, quero apenas que amenizes a minha solidão. Sou fêmea, e tu és um macho jovem e belo. O futuro pertence-nos”. E a leoa afagava o homem que, levado pelo prazer, a possuiu. O tempo passou. Um dia, o homem foi acordado pelos rugidos da sua companheira, vindos do interior da floresta. Surpreendido, viu que o animal tinha parido quatro seres semelhantes a si próprio: dois rapazes e duas raparigas. Ao amanhecer, a leoa morreu. Estes quatro filhos foram os pais de todos os povos do Nanu. Eis porque as “gentes do alto” se dizem descendentes de osi (leão ou leoa) e de um homem.
Povos ágrafos, os povos africanos. Por essa razão lhes chamaram povos “primitivos” e “selvagens”, cujo “Homem ainda não entrou na História” , como também já se ouviu, e leu.
Porém – e nunca será excessivo lembrá-lo! –, povos com uma poderosíssima literatura oral, riquíssima e vária, de entendimento do mundo e de sabedoria humana. E isto, se mais não houvesse, só por si bastaria para sedimentar uma Cultura e impor a sua identidade inequívoca.
De literaturas emergentes, as literaturas africanas de língua portuguesa são hoje literaturas com uma pujança e uma modernidade que a edição, a crítica, os estudos universitários e a fortuna de leitores tem vindo a solidificar e a confirmar.
Jovens literaturas, é certo – mas literaturas com estórias para contar. Estórias vivas – e muitas! –, cheias de gente dentro – com seus dramas, suas alegrias, seus casos e magias, seu humor.
Esse é o segredo, a sedução: ter estórias para contar.
Assim, também, a literatura angolana de ficção narrativa, a cuja vitalidade crescente se vem agora juntar A siamesa: aparição, primeiro volume de uma trilogia, e obra de estreia de Kate Hama – um general à escrita nos seus labirintos.
Kate Hama, cujo nome de baptismo é Bartolomeu Alicerces Neto Hama, nasceu no Bailundo, planalto central de Angola, a 16 de Julho de 1963. Militar de carreira, actualmente com a patente de general do exército angolano, na reserva – graças ao processo de paz que tanto demorou a chegar, mas é hoje uma verdade que já ninguém poderá violentar, nem trair –, encetou Kate Hama, com este romance, uma nova e mais nobre forma de combate: a da afirmação da cultura angolana sobre o mundo, através da magia das palavras e das estórias que só por elas se podem contar. Com a História e a memória cultural do seu povo e do seu país, como húmus e placenta da criação literária, naturalmente.
E esta é a primeira coisa – de todas, a mais valiosa – a ser saudada: o escritor que só a Paz pôde trazer, e dar, à literatura angolana.
Se toda a obra de criação literária é uma forma de autobiografia sub-reptícia do seu autor (e parafraseando Novalis, “quanto mais ficcional, mais verdadeiro”), também este romance, A siamesa: aparição, de Kate Hama o não deixará de ser, não obstante o autor se socorrer e servir do género literário da ficção científica para a sua elaboração narrativa. Na verdade, “Ekepa kalinhela v’osonde”, como diz um provérbio umbundu, cuja tradução em português significa: “O osso não se perde no meio do sangue”. E ainda um outro provérbio: “Esenda kalyendenda ongali”, que em português quer dizer: “Lagartixa de patas para o ar não anda de costas”. Uma adivinha umbundu pergunta: “Chyatuva akulo nhe?”
– “Que foi impossível aos ancestrais?” – e eis algumas das respostas:
– Ekoso okulitwika p’ohanda! (Espetar um pau numa rocha!)
– Okusakãla ondalu k’ilu lyovava! (Fazer fogo na água!)
– Okunhaleha osema k’ilu lyovava! (Secar farinha na água!)
– Olumbungululu okuvitenda! (Contar as estrelas!)
– Okulama ochilulu! (Cumprimentar um espírito!)
– Okwenda l’owato v’ongongo! (Andar de barco na montanha!)
Que tem tudo isto que ver com A siamesa: aparição, de Kate Hama? – perguntar-se-á. Não posso não responder, senão dizendo que é justa e precisamente desta cosmogonia e da cultura que ela encerra que parte e se constrói esta obra, ela mesma e a seu modo uma cosmogonia – ou, se se preferir, uma lenda fundadora sobre almas penadas, com suas almas e espíritos em trânsito entre o humano e a desencarnação, pelos universos do maravilhoso e do fantástico de que se alimentam as oraturas tradicionais angolanas. E isto, tanto ou mais que só uma obra do género literário da ficção científica.
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Dá-nos o autor como espaços onde decorre a narrativa, para além de Galáxias, como as do Além e dos Ares Quentes, por exemplo, a Cidade das Ruelas Estreitas (ou Apertadas), a Cidade de Solos Húmidos, os Condados do Labirinto, com o seu Salão Nobre, os Salões Amarelos da Constelação Unipolar, e a Esfera Rolante como se fosse o seu Cosmos.
Kapilas e Uvalas são os seres seus habitantes, muito embora entre si, por penetração sexual, à semelhança dos humanos, geneticamente se cruzassem e reproduzissem. Como seus líderes supremos, o Primeiro entre Pares e o Primeiro entre Ímpares.
“Lorde Kapito, o senhor do Labirinto” (título, aliás, do Capítulo V, e personagem que no capítulo anterior é dado como “O terror das imaginações”), “era um dedicado e extremoso anfitrião”, e um romântico. Acomodando “com brilho e riqueza em conforto os seus visitantes ou convidados.”, “Não acreditava que as guerras iluminavam a mente.”, pois
A paz, assim como a guerra, são dons universais que inúmeras vezes tiveram de ser exigidos da humanidade.
Os que se guerreiam, a uma dada altura sentem a necessidade da paz, para voltar a animar os valores mais usualmente humanos.
De certo modo, a paz mal amanhada e aconselhada é a guerra incubada. Para as zonas da Esfera Rolante que procurassem a paz e a calmaria, o Lorde tinha postado as Legiões dos Intriguistas, dos Conspiradores, Fazedores de Insatisfeitos, Promotores da Estupidez perante a Riqueza, e, finalmente, Corruptores. Um rol de gabinetes funcionais e activos em full-time, na defesa da existência da estrutura da Torre e dos seus superiores da Galáxia dos Ares Quentes.
Lêem-se estas palavras de exorcismo e de esconjuro da guerra e da morte que dela inevitavelmente advém, a páginas 45, cujos funcionários
Preocupavam-se com o dia a dia de certo número de escolhidos da Torre para lhes transmitirem, durante as festas, as orgias e os passeios nas localidades de Lorde Kapito, os fundamentos de uma vida saudável entre a intriga, a inépcia, a incompreensão, a desonra, a utilização daqueles que não eram adeptos dos ensinamentos do Lorde e daqueles que se uniram aos kapilas.
A vida durava pouco…
E mais adiante, diz o autor, volvendo a um plano já não tão próximo do humano, que “O valor da vida é pleno, quando a alma se confunde com os nossos dons, os espirituais e os naturais.”
Como anfitrião dos humanos, que antecipadamente se libertavam das suas “carcaças” para o encontro, o Lorde, depois de um “firme aperto de mão”, abraçava fortemente a alma dos homens, com quem trocava “Olhares sábios e segredantes.”, enquanto que
Às almas das damas, dependendo da sua estrutura física e tessitura facial, o Lorde tanto podia, depois de levemente vergar-se e menear a cabeça, beijar a mão como dar um ou dois dedos de conversa promissores!
O Lorde, com a sua “formação secular em Direito de Usurpação dos Dotes Inerentes ao Cérebro Humano.”, e como Representante do Primeiro entre Ímpares, não se poupava a esforços para impressionar as humanas almas que o visitavam, promovendo bailes e orgias inesquecíveis, lautos banquetes com tudo quanto de melhor, em comidas e bebidas se podia importar da Europa ou da África do Sul, a que nem os perfumes Kenzo, da sua particular predilecção, faltavam. Afinal, sentencia ele (ou o narrador por ele), “Os humanos viviam de ilusões e efémeras banalidades.”
Metáfora do poder, das suas estruturas e hierarquias, e metáfora da guerra, A siamesa: aparição é um romance cheio de humor, de ironia, e de transgressão (características tão comuns ao povo angolano, no seu quotidiano), onde o mito ancestral da dualidade, ou do duplo, se torna o fio condutor e labiríntico da narrativa, como desde o próprio título se dá a ler.
A perseguição à Siamesa, levada a cabo por uma Legião especial Ad-Hoc, da Constelação Unipolar, composta por Kanupy II, Dito e Alaina, é feita com as mais requintadas invenções tecnológicas, como os Carros de Cata-Ricos e os sistemas de comunicações bipolares, a par de camiões e automóveis humanos, onde não faltam sequer humaníssimos acidentes de viação, ou engarrafamentos dos túneis de ascensão. Túneis de ascensão para as almas, naturalmente. E para os seus meios de transporte, detecção e resgate.
Dividido em cinco partes e quinze capítulos, este primeiro romance de Kate Hama não descura nem a figura da mulher nem a sensualidade, o amor, o afecto e o erotismo nas suas páginas. E são justamente personagens femininas algumas das mais fascinantes criações ficcionais traçadas neste livro, como Alaina, Laurinda e Serafina, para além da Siamesa, que, depois da “missão cumprida” por Kanupy II, ao resgatá-la finalmente, e de lhe “fazer as análises da praxe”, a colocou a “relaxar na estufa central da Constelação Unipolar.” Posteriormente, e durante 12 horas, foi autorizada a voltar “a sentir emoções humanas.”, e a rever todos os seus entes queridos.
Não se pode dizer deste livro que seja uma obra-prima, muito embora, descontando, por vezes, um excesso de descritivismo narrativo, seja A siamesa: aparição uma obra consistente, reveladora de um talento sólido de contador de estórias, que vivamente auguro se venha aperfeiçoando nas próximas narrativas, pois só escrevendo, rasgando, reescrevendo muito, se aprende a escrever.
Livro de frescura e vida (porque, afinal, também as almas penadas ou extraterrestres são feitas de sentimentos e vida), A siamesa: aparição deve ser saudada em leitura de proveito e encantamento – e, permito-me repetir –, deve ser saudada fundamentalmente como a obra literária de um escritor que só a Paz pôde trazer à literatura angolana e, agora, ao nosso convívio.
*Zetho Gonçalves é poeta angolano e reside em Lisboa
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