Ações afirmativas no Brasil
O movimento social negro brasileiro colocou na agenda nacional a discussão sobre a “questão racial”, há muito focada como uma grave questão nacional. E, que com as Convenções e o Direito internacional ganha ramificações globais. O foco nestas questões deve exigir uma revisão das condições nas quais os debates sobre a modernidade (e a modernização) brasileira têm sido elaborados, levando a discussão sobre a questão da exclusão social e das desigualdades a outros parâmetros, como a “raça”, exigindo a luta por políticas públicas visando a justiça social e uma cidadania plural.
Sabemos que na espécie humana o conceito de raça não tem muita valia. A estrutura das populações humanas é extremamente complexa e varia de região a região, de povo a povo. Existem sempre nuanças, devidas a contínuas migrações entre e através das fronteiras de cada nação, que tornam impossíveis as separações precisas. No entanto, o racismo é mais antigo que as ideologias e, provavelmente tão antigo quanto a humanidade. E não é prerrogativa dos europeus e americanos.
Histórica e socialmente as interações entre escravidão e racismo são bastante complexas e sutis. Certamente, e escravidão legou teorias e práticas racistas. Mas isto não quer dizer que a discriminação e os preconceitos atuais sejam somente conseqüência dessa tradição. Essas ideologias racistas não causam práticas racistas, mas as medeiam, na medida em que as tornam compreensíveis. Discriminação racial é uma característica da sociedade atual, onde ‘raça’ é um dos instrumentos sociais para excluir os negros ou não-brancos da cidadania completa.
Desde o início da aventura histórica da ‘terra brasilis’ que as condições de reprodução social dos africanos escravizados, tornou-se um fator inicial que levou os seus descendentes a se constituíram nos brasileiros mais desfavorecidos em comparação com aqueles que aqui chegaram em condições de comando e beneficiários diretos da sociedade, das relações de poder e de produção escravistas então instauradas, ambas fundamentadas em uma alegada superioridade biológica e cultural, conjugada à crença na existência de uma supremacia racial objetiva. Desta maneira, tempo e melhores condições de adaptação tiveram os integrantes das diversas camadas sócio-raciais daqueles considerados “brancos”.
Quanto aos africanos escravizados e, posteriormente, afro-brasileiros ou afrodescendentes - mesmo tempo participado ativamente das lutas contra a escravidão e o racismo, e pela cidadania -, as inúmeras desvantagens iniciais se cristalizaram e se avolumaram ao longo de mais de três séculos e meio de regime social e econômico escravista (1535-1888) e, se acentuaram desde a Abolição da Escravidão (1888) e da Proclamação da República (1889), até o presente, com o imperativo da sociedade de classes, do regime de trabalho livre, da globalização e, mesmo sob a salvaguarda jurídico-política dos direitos iguais, dos princípios da isonomia e do mérito. Portanto, há no Brasil histórica e socialmente uma estrutura social de poder baseada em classes e na reprodução de uma hierarquia étnico-racial.
Desde o início, então, no Brasil a cor da pele e outras características sócio-físicas tem se constituído em fatores que impedem a implantação do postulado de “oportunidades iguais para todos”. Este fato interfere diretamente na aplicação justa dos “princípios da isonomia e do mérito” e dos “direitos iguais”, porque as relações sociais estão pautadas por linhas de cor visíveis e “invisíveis”, desenhadas e redesenhadas ao longo da formação nacional brasileira. A cor da pele foi (e é) tão relevante que permanece crescente as distâncias sócio-econômicas e culturais entre “negros” e “brancos” no Brasil.
Assim sendo, somos levados a crer que vivemos um contexto onde se impõe a necessidade de remexer no legado de nossos ancestrais: os pilares do edifício social, o fundamento e a gênese da formação, reprodução e transmutação da elite brasileira, que se reatualizam e se refazem sob os mantos das meta-narrativas nacional da mestiçagem, do mito da ‘democracia racial’ e da sociedade de classes capitalista brasileira contemporânea. Sob o mito da democracia racial brasileira, escondem-se diferenças brutais entre as condições de vida das populações negra e branca, em relação à mortalidade infantil, expectativa de vida, níveis de educação e de renda, taxa de desemprego, etc. Também os índices sociais de bem-estar relativos aos mestiços (salário, educação, moradia, saúde, longevidade, etc.) os aproximam muito mais das condições de vida dos negros do que dos brancos.
O economista Marcelo Paixão, da UFRJ, vem se dedicando a aplicar o indicador de bem-estar chamado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), para estudar as desigualdades raciais no Brasil. Dados obtidos pela combinação de índices de Rendimento, Longevidade (IL) e Educacional, medem as condições de vida da população de cada país. Análises quantitativas para o ano de 1998 constataram o seguinte. Sua escala varia de 0 a 1 — quanto mais próximo de 1, melhor a qualidade de vida. Assim, números superiores a 0,800 são considerados altos, entre 0,500 e 0,799, médios, e inferiores a 0,500, baixos. O IDH dos negros brasileiros seria comparável ao dos países mais pobres da África e bem abaixo do IDH da população branca brasileira. Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, o contingente branco goza de IDH elevado. Nas áreas urbanas da região Norte, a população branca apresenta um IDH quase alto. Apenas no Nordeste, a região mais pobre do país, a população branca brasileira apresenta um IDH médio.
No caso da população negra e mestiça, porém, não existe nenhuma região do nosso país em que ela tenha um IDH elevado: nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste e nas áreas urbanas da região Norte, o IDH da população afro-descendente brasileira apresenta-se como médio, e no Nordeste, médio-baixo. Entretanto, é necessário ressaltar que em três Estados dessa região — Maranhão, Piauí e Alagoas — o IDH dos negros é de nível quase-baixo.¬ Decorridos 121 anos da Abolição da Escravatura, os negros continuam em franca desvantagem em todas as regiões do país. Assim, nas regiões e estados onde o IDH é mais baixo, a baixa qualidade de vida pune de forma mais dura os afro-descendentes e, nas regiões mais desenvolvidas, os benefícios gerados pelo processo de desenvolvimento das últimas décadas são desfrutados, sobretudo, pelo contingente branco.
O abismo que separa os brasileiros brancos dos de ascendência africana em termos de rendimento médio familiar per capita, esperança de vida e nível de escolaridade de adultos pode ser ilustrado também pelo IDH desagregado por cor. Se fossem considerados como habitantes de um país à parte,¬ os afro-descendentes ocupariam a 108ª posição no ranking proposto pelo relatório do PNUD, enquanto os brancos deteriam a 48ª posição — o Brasil, em 2000, ocupava a 74ª posição entre os 162 países estudados. Essa constatação traduz claramente a situa¬ção¬ privilegiada – fruto de relações históricas e sociais desiguais que se reproduzem e cristalizam na contemporaneidade - desfrutada coletivamente pela população branca e a franca¬ desvantagem vivenciada pela população negra no Brasil.
Assim sendo, o racismo e a discriminação racial são fatores preponderantes das crescentes desigualdades brasileiras. Outro dado extremamente significativo é o que o custoso investimento em educação que as famílias negras realizam, não tem o retorno desejado. Em igualdade de condições de escolaridade e experiência, trabalhadores negros recebem uma massa salarial de 30% a 40% menos que os brancos. Assim, qualificação, experiência e conhecimento - considerados o capital humano mais importante de um trabalhador no mercado de trabalho - não são suficientes para garantir à população negra acesso aos melhores postos de trabalho. Dessa maneira, em 1999, a psicóloga social Maria Aparecida Bento, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, declarou que o país segue recusando-se a reconhecer o investimento que metade de sua população está fazendo e, inclusive, sabota esse investimento, prejudicando o desenvolvimento humano não apenas dos negros, mas do Brasil como um todo.
É igualmente importante ressaltar que a desigualdade racial entre negros e brancos no Brasil, conforme mostram as estatísticas oficiais, tem permanecido constante (quando não agravadas) nos últimos vinte anos, período em que houve um progresso geral para o conjunto da população.
No mercado de trabalho, a segregação ocupacional por raça, etnia e gênero continua presente. Segundo um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), negros e índios estão empregados em vagas de baixos salários na América Latina. O BID recomenda que governos e empresas privadas, entre outras ações, empreendam “políticas de ação afirmativa muito bem focadas e direcionadas, além de programas de capacitação e recapacitação para todos os grupos discriminados” (O Globo, 12/10/2009, p. 15).
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Sínteses dos Indicadores Sociais, 1998-2008) revelam que os brasileiros pretos e pardos continuam minoria no seleto grupo do 1% mais rico do Brasil. Todavia, mostram que em 10 anos (1998 a 2008), cresceu de 8% para 15% a proporção dos que, dentro desta elite econômica, se identificaram como pretos ou pardos. Tal faixa tinha, em 2008, 1,8 milhão de pessoas, cuja renda familiar era de R$ 7.259,00.
No entanto, aquele pequeno aumento na distribuição da riqueza, não apaga outro fato: entre os 10% mais pobres, os autodeclarados pretos ou pardos eram 74% em 2008, ante 72% dez anos antes. (No total da população brasileira, desde 2008, pretos e pardos representam 51%. Em 1998, eram 45%).
No campo da melhoria educacional, os mesmos dados do IBGE mostram uma melhoria da escolaridade de pretos e pardos. De 1998 a 2008, a proporção entre eles com ensino superior completo no total de adultos (25 anos ou mais) passou de 2,2% para 4,7%. Mas, a diferença para a população autodeclarada branca ainda é significativa, pois esse grupo variou de 9,7% para 14,3%.
A desigualdade no acesso à educação acaba se refletindo também na desigualdade de rendimentos entre os grupos raciais. Pois, no grupo com ensino superior completo ou incompleto, a renda média por hora do trabalhador branco é de R$ 17,30. No caso de um trabalhador preto ou pardo com escolaridade igual, é de 32% menor, de R$ 11,80. Entre trabalhadores que completaram, no máximo, a quarta série do ensino fundamental, também, se verifica diferenças a favor dos brancos (média de R$ 4,40 por hora) em relação aos pretos e pardos (R$ 3,30). (“Entre os mais ricos, pretos e pardos são 15%”. Folha de São Paulo, 10/10/2009, p. C 3).
Estas conclusões mobilizam atualmente diversos segmentos sociais – movimento social negro, cientistas sociais, historiadores, geneticistas, políticos, advogados, juristas, artistas – estão envolvidos no debate sobre “raças”, racismo, relações raciais, ações afirmativas e políticas públicas no Brasil. O movimento social negro conseguiu uma grande visibilidade sócio-política ao levantar uma ‘agenda anti-racista racializada’ contra a discriminação, a violência e a exclusão racial.
Neste campo de lutas rivalizam-se aqueles que buscam reavaliar e redefinir os fundamentos da história, nação e sociedade brasileira, aproximando-se das noções de ‘multiculturalismo’. Criticam os resultados das políticas universalistas e assimilacionistas que se baseiam na defesa do intenso processo de miscigenação racial e cultural. Advogam que a implantação de políticas focadas, em um segmento específico e expressivo da população, não deve significar o abandono de políticas universais. E, além disso, beneficiaria a economia e a sociedade capitalista brasileira como um todo.
É importante salientar que: “ainda hoje, a maioria das políticas sociais no Brasil, em diversos campos, não teve capacidade de universalização. O indicador social que mais sofre esta incapacidade é a educação. No ano de 2006, por exemplo, a taxa de analfabetismo totalizava mais de 10% da população. Por outro lado, mesmo a recente universalização de determinados serviços públicos no Brasil caracteriza-se pela baixa qualidade dos serviços prestados. Neste sentido, mais uma vez, o sistema educacional brasileiro serve de exemplo. Assim, a efetiva universalização dos serviços públicos essenciais (educação, saúde, previdência, segurança e saneamento, entre outros) ainda é um sonho” (Marcelo Paixão e Luiz M. Carvano, orgs., Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, 2007-2008, p. 19). E, como os negros compõem a maioria dos pobres brasileiros, são eles também que mais sofrem com a precariedade das políticas universais. A manutenção e o aperfeiçoamento das políticas públicas não é contraditória, portanto, com as ações afirmativas e a busca da equidade racial no Brasil.
Outros não negam que há um “racismo à brasileira”, mas ressaltam que no Brasil não cabe a bipolarização entre brancos e negros, pois devemos valorizar a mestiçagem como um fator diferencial brasileiro. Criticam a importação de modelos de ações afirmativas oriundos de contextos históricos e sociais diferentes (como os EUA e a África do Sul). Defendem que o enfrentamento do “racismo à brasileira” deveria ocorrer através de ‘políticas redistributivas’ de caráter universal. Porque, a mestiçagem tornou praticamente impossível qualquer tentativa de classificação racial. Conseqüentemente, tornaria impraticável políticas de discriminação positiva a favor dos negros brasileiros.
Parece não haver mais como frear a História. Como escreveu Stephen Jay Gould, “certamente podemos evitar a linguagem do conflito racial se jurarmos nunca falar sobre raça. Mas então o que vai mudar e o que será resolvido?”. Ora, viver em sociedade requer permanentemente encarar e superar conflitos. Ou, como escreveu Kant (1724-1804), sem disputas não há progresso. Esta é uma das lições da História: a vida social e o fim da ação política não equivalem a nenhuma perfeição estática. A ação política do homem vivendo em sociedade deve, então, colocá-lo sempre em movimento. Chegou mais um momento de uma nova geração de homens e de mulheres influenciarem o curso da História brasileira.
No que diz respeito ao enorme contingente de afro-brasileiros, é imperativo conjugar medidas incisivas (educacionais, saúde, econômicas, distributivas, políticas, jurídicas e sociais), que possam produzir resultados a curto e médio prazos, as quais certamente tenderão a beneficiar a sociedade como um todo.
* Edson Borges: Mestre em Antropologia Social, Professor da Universidade Candido Mendes e Doutorando em História no Programa de História Comparada da UFRJ.
*Por favor envie comentários para [email][email protected] ou comente on-line em http://www.pambazuka.org