Estado moçambicano ficou “dólar-crático”

Nesta análise, Emídio dialoga diretamente com o pensamento do filósofo moçambicano Severino Ngoenha no ano que é dedicado a Samora Machel em Moçambique. O que mais chama a atenção no artigo é a reflexão filosófica sobre o estado moçambicano que tornou-se dolar-crático, onde tudo se faz em função do rendimento e com pouca atenção às necessidade populares.

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Num ano dedicado a Samora Machel, o filósofo moçambicano Severino Ngoenha afirma que a institucionalização da segunda República moçambicana na década de 90 comportou não só amudança política e económica como também a instauração do dólar (norte americano) em valor supremo da nossa sociedade: O Estado ficou “dólar-crático”, onde tudo se faz em função do rendimento, do ganho, das mordomias. Esta e outras acutilantes ideias estão no artigo “Por um Pensamento Engajado” assinado pelo filósofo e professor universitário e que abre o livro“Pensamento Engajado” lançado na noite desta terça-feira na Universidade Pedagógica (UP). A obra, uma colectânea de 13 artigos em forma de ensaios sobre a filosofia africana, educação e cultura política, é de autoria de Severino Ngoenha e José Castiano, filósofos e docentes na UP.

Com o seu “pensamento engajado”, Ngoenha faz uma reflexão filosófica sobre a natureza do Estado moçambicano, tanto na primeira como na segunda República. Pela sua natureza libertária e socialista, a primeira República era mais distributiva e “os factores e os executores da política estatal conheciam exactamente o lugar de cada um e o que tinham que fazer”. Acresce que o papel de cada funcionário do Estado, desde o ministro até ao servente de uma escola primária, era estar ao serviço do que se acreditava ser o interesse dos moçambicanos.

“O Estado moçambicano era implacável contra tudo que, de longe ou de perto, se parecia com corrupção, desvio de bens públicos, tentativa de enriquecimento pessoal, acumulação individual, etc”, escreve. O filósofo e professor universitário elenca no seu artigo valores que constituíam o essencial daquilo que era ou devia ser o Estado, nomeadamente um Estado ao serviço das populações. “Estar ao serviço do nosso povo era um valor,participar na construção de Moçambique através do trabalho e dedicação era um valor”, exemplifica.

No entanto, as “intenções excelentes” esbarravam contra as contradições que caracterizavam o Estado socialista de Samora. Aos olhos de Ngoenha, a dinâmica participativa estava subordinada a uma ideologia unilateral de uma única família política, que se arrogava deter a única visão justa para a construção do país. A opção ideológica da Frelimo é compreensível no quadro da divisão do mundo que então se vivia, “apesar de a Frelimo se ter visto forçada a aderir a um dos lados sem estar necessariamente convencida do bem fundado da sua opção ideológica”.

A confirmação desta tese está naquilo a que o filósofo chama de “adesão sem reservas” da maioria da classe política de esquerda às teses e às posições ultra-liberais que repentinamente irromperam na vida social moçambicana durante o início da segunda República. “(…) a sociedade moçambicana viu-se, de um dia para o outro, radicalmente mudada: de uma economia planificada para uma economia selvagem”, escreve Ngoenha, sublinhando que em Moçambique não se pode falar de economia liberal – porque o liberalismo tem regras. No liberalismo subjaz o pressuposto de livre iniciativa dos indivíduos e a possibilidade de concorrerem uns com os outros. E para o autor, a situação moçambicana não se prestava a esses princípios por duas razões: por um lado porque as populações não tinham formação e informação e, por outro, porque não tinham os meios necessários para entrarem neste tipo de economia. “Abandonar as populações de um momento para o outro ao volante de um porsche que vai a duzentos quilómetros à hora sem lhes terem previamente ensinado a conduzir, significava condená-los inevitavelmente ao desastre”.

Segunda República e o Estado “dólar-crático”

Se o Estado da primeira República (1975-1990) pecava pela sua presença em todas as esferas da vida pública e individual ou, para usar a expressão de Ngoenha, pela sua pan-presença, o da segunda República (de 1990 aos nossos dias) peca simplesmente pela sua ausência. Na primeira República o Estado decidia pela educação, pela saúde, pela moral pública e individual, pelos valores individuais colectivos e, para isso, “combatia os alicerces individuais e culturais dos indivíduos e dos grupos”. Na segunda República “as populações não sentem o Estado – desde as instâncias mais elevadas até ao servente de uma escola ou dum hospital – uma pessoa jurídica que está presente e ao seu serviço”. O Estado ficou “dólar-crático”, escreve Severino, fazendo notar que tudo se faz em função do rendimento, do ganho, das mordomias. “O funcionário do Estado transformou-se de servidor público em servidor de si próprio, instrumentalizando o privilégio que o seu lugar lhe concede”, acusa, indicando que a situação entra em contradição com a ideia que as populações fazem de um funcionário.

É ainda na segunda República que se assiste a um crescimento económico sem impacto na vida das populações. “Aos jovens dá-se a consumir uma cultura feita de telenovelas e de slogans tipo ‘2M nossa tradição nossa cultura’, ou então ‘a nossa cerveja, a nossa maneira de ser e de estar’”, escreve no seu pensamento engajado.Para Ngoenha, um dos primeiros sinais de ausência do Estado foi dado quando as populações começaram a fazer justiça com as suas próprias mãos. “Muitas vezes queimava-se um miúdo que roubava para comer, quando funcionários do Estado e outros desviavam coisas muito mais consistentes – esvaziaram literalmente os cofres do Banco Austral, venderam bens essenciais do Estado a estrangeiros ou aos que têm 500 mil dólares para comprar apartamentos – e eram indemnes a qualquer sanção”. Esta violência social leva as populações a serem violentas. “Podemos dizer que os miúdos da rua são violentos, há assassinatos na cidade, assaltos à mão armada que culminaram em violência – espectáculo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Macuácua”, admite, apontando que toda a violência pode ser conduzida à “dólar-cracia”: a instauração do dólar como valor supremo da nossa sociedade.

“Então, ao mesmo tempo que o número e a qualidade de carros e casas de luxo aumenta na cidade, as viagens para compras na RSA, na Suazilândia e mesmo Portugal aumentam, ao mesmo tempo que se multiplicam as viagens para Dubai, para bronzear-se no Estoril ou para o Carnaval no Rio, o número de pobres, de miseráveis não cessa de aumentar. O número de doentes que morrem de malária devido à falta de saneamento de meio aumenta”. Para o autor, a segunda República oscilou da democracia à “dólar-cracia e viu os verdadeiros valores para qualquer sociedade negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos

Retorno ao colonialismo

A falta de vigilância na segunda República condena a maior parte da população, os mais fracos, “a processos que recordam muito o que era a época colonial, mas sobretudo a distância entre o Estado e a Sociedade”. “Quando vejo certas práticas a que se prestam certas elites moçambicanas, como acordos de parceria com empresas ou indivíduos sem escrúpulos, pergunto-me se o discurso é diferente do discurso de António Enes”, questiona, alertando que o risco maior é condenar as populações mais fracas do nosso povo ao novo chibalo, evidentemente com a nossa cumplicidade.

Lembre que em finais do século XIX, Portugal conheceu um intenso debate sobre a sustentabilidade do projecto colonial, depois do ultimato inglês de 1890. Contra a corrente que defendia que Portugal devia desinteressar-se das colónias, jovens como António Enes defendia que era imperioso ter colónias rentáveis como moeda de troca para melhor integrar a Europa. Para isso, Portugal teria primeiro que pacificar as suas terras, controlá-las com militares e administração e assim podia dizer aos parceiros: “tenho terra para cultivar, militares para defendê-la e, sobretudo, pretos para trabalhá-la”. Este foi o discurso de António Enes que, volvido mais de um século, Ngoenha pergunta-se se o mesmo não está sendo reapropriado por certas elites moçambicanas.

Mas de uma coisa o filósofo tem certeza: “todo o sistema de dominação do nosso povo contou sempre com a cumplicidade de grupos entre nós”. A escravatura, exemplifica, foi facilitada por certas práticas internas pela cobiça e sobretudo pela falta de sentido histórico, pois quando o momento chegou, vendedores e vendidos tornaram-se todos escravos e colonizados. Hoje a falta de sentido histórico seria os pequenos grupos pensarem que constituiriam as excepções de um processo neocolonial no qual são ou podem ser cúmplices. “Se a questão é dinheiro, então somos mais baratos que os nossos predecessores. Temos que lembrar que uma espingarda no século passado era mais difícil de construir que um Mercedes hoje. Se temos que nos vender para obter um carro, temos que pensar não só na traição histórica para com os nossos e a causa negra de uma maneira geral, mas também no preço dessa mesma traição”, adverte.

Severino Ngoenha é o filósofo moçambicano mais interventivo na esfera pública nacional, tendo publicado mais de uma dezena de livros. Destaque vai para “Por uma Dimensão Moçambicana de Consciência Histórica”, “Filosofia Africana: Das Independências às Liberdades”, “O Retorno do Bom Selvagem: uma perspectiva filosófico-africana do problema ecológico”, “Mukatchanadas”, “Vico e Voltaire – Duas Interpretações Filosóficas do Século XVII”, “Os tempos da Filosofia – Filosofia e Democracia Moçambicana”, “Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique” e “Machel – Ícone da 1 ͣ República?”.

*Emídio Beúla escreve para o jornal O Savana http://www.pambazuka.org