“Serendipidades”, a força histórica na construção literária de Ana Maria Gonçalves.

Serendipidade: A faculdade ou o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso.
“Serendipidades!” é o nome que Ana Maria Gonçalves escolheu para o prólogo de seu segundo romance. Nesse texto de abertura, a autora conta que foi em um desses momentos em que se busca uma coisa para acabar encontrando outra ainda mais interessante que surgiu o embrião de Um defeito de cor.

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Serendipidade: A faculdade ou o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso.
“Serendipidades!” é o nome que Ana Maria Gonçalves escolheu para o prólogo de seu segundo romance. Nesse texto de abertura, a autora conta que foi em um desses momentos em que se busca uma coisa para acabar encontrando outra ainda mais interessante que surgiu o embrião de Um defeito de cor.

Em uma livraria, enquanto procurava por guias de turismo sobre Cuba, caiu por acaso um livro aberto em sua mão: Bahia de todos os santos – guia de ruas e mistérios, escrito por Jorge Amado. Na página aberta, um convite: “Não tenhas, moça, um minuto de indecisão, atende ao chamado, e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana”. No mesmo convite, Jorge Amado incitava a leitora a pesquisar e contar a história dos Malês, africanos hauçás, muçulmanos escravizados, conhecidos no Brasil como mestres, sábios e professores e responsáveis por uma das grandes revoltas contra a escravidão, ocorrida em 1835, em Salvador – uma parte da história do Brasil que Ana Maria desconhecia.

Ela teve certeza de que Jorge Amado estava falando com ela e aceitou o convite. Mudou de vida e de emprego e foi viver na Bahia, se reinventar como pesquisadora e escritora. Pesquisou sobre a revolta dos Malês e descobriu que muitos intelectuais já vinham tomando esse assunto como objeto de estudo, o que desconstruiu sua ideia inicial, de escrever sobre algo inédito e pouco estudado. Daí veio outra mudança de trajeto. Enquanto vivia na Ilha de Itaparica e escrevia seu primeiro romance, mais uma vez por acaso (e também por sagacidade – mais um momento de serendipidade), Ana Maria encontrou, em uma pilha de papéis de rascunho que algumas crianças usavam para desenhar, centenas de documentos manuscritos que relatavam momentos e personagens esquecidos pela história oficial. Ela foi capaz de enxergar nesses papéis algo especial e assim nasceu a ideia de escrever sua obra-prima.

Baseado em diversas histórias reais e ancorado em fontes primárias de pesquisa, Um defeito de cor, o segundo livro de Ana Maria, é um romance de 950 páginas que arrepia do começo ao fim. Personagens reais e fictícios convivem na obra para contar a saga da população africana e afrodescendente no Brasil na voz de uma mulher negra. Inspirada em Luísa Mahin, possivelmente mãe do abolicionista Luiz Gama (uma personagem real, mas sobre a qual há pouca história documentada), Kehinde, a personagem principal e narradora do livro, representa o protagonismo de todas as mulheres negras ao longo da nossa história.

Como narra a escritora, Kehinde veio para o Brasil menina, nascida no reino de Daomé. Foi escravizada, foi mulher livre, foi empreendedora, mãe, ativista e muito mais. Viveu na Bahia, no Rio de Janeiro e São Paulo. Voltou à Africa para descobrir conexões ainda mais profundas entre o Brasil o continente. Afrodescendência, identidade, negritude, diáspora, miscigenação, migração forçada, trabalho escravo, resistência cultural, luta, violência, alegria, sofrimento, política, maternidade, gênero, religiosidade, abolicionismo, feminismo. Tudo isso e muito mais faz parte dessa narrativa impressionante construída por Ana Maria Gonçalves, que acredita que os cinco anos de pesquisa, escrita e reescrita de Um defeito de cor fizeram mais por sua própria identidade do que seus 35 anos vividos até então.

Iolanda Barros contribui para o site Afreaka.com.br
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