A recuperação de sementes é possível? Uma história vinda da aldeia de Kathulumbi, no Quênia
http://www.pambazuka.org/images/articles/499/67531_kathulumbi_tmb.jpgOs habitantes da aldeia de Kathulumbi, no Quénia, estão a construir um banco de sementes com vista ao fortalecimento da biodiversidade e do acesso a variedades de sementes não contaminadas. Produtos básicos tradicionais como a mandioca e o milho-miúdo têm vindo a ser substituídos por variedades de milho geneticamente modificadas e de preço mais acessível. Preservando as variedades de sementes tradicionais, os habitantes de Kathulumbi pretendem tornar as sementes mais baratas, mais sustentáveis e mais nutritivas do que as suas congéneres geneticamente modificadas.
À medida que o sol nasce nesta manhã de Fevereiro, a Mumo salta da cama para preparar a iguaria do pequeno-almoço da família, papa de milho-miúdo. Ela e a família gostam de comer papa ao pequeno-almoço porque os deixa satisfeitos e permite-lhe passar o dia sem almoçar. De vez em quando, comem-na com batata-doce ou mandioca mas é difícil apanhá-las por estes dias. O pão ficou muito caro e a Mumo diz que não consegue comprá-lo para o pequeno-almoço. Até mesmo o milho-miúdo tem de vir de longe, onde alguns agricultores ainda o cultivam e os preços são, por vezes, muito elevados.
A Mumo e as suas cinco crianças vivem na aldeia de Kathulumbi, a cerca de 100 km da cidade de Machakos, na Província Oriental do Quénia. Enviuvou recentemente e viu-se obrigada a mudar-se para junto da família, pois não conseguia pagar a renda em Machakos onde trabalhava como professora numa escola primária.
O DECLÍNIO DAS COLHEITAS TRADICIONIAS
A Mumo cultiva predominantemente milho no seu terreno de um quarto de acre. È esta a semente básica a partir da qual se prepara ugali ou sima, como alguns lhe chamam no Quénia. Ela diz que se lembra, quando era mais jovem, que as pessoas cultivavam e consumiam mais tubérculos e colheitas tradicionais como inhame, mandioca, milho e batatas-doces. Mas, aparentemente, a modernização mudou tudo. Será por isto que as pessoas já não são saudáveis e sofrem de inúmeras doenças? Até as crianças mais jovens sofrem de diabetes, agora.
Quando a “Senhora Mumo”, como os alunos lhe chamavam, se mudou para Kathulumbi, deparou-se com uma comunidade organizada num grupo que se auto intitulava Comité para o Desenvolvimento Comunitário do Banco de Sementes de Kathulumbi (Kathulumbi Seed Bank Community Development Committee). O responsável local, Maleve, incentivou-a a juntar-se ao grupo e a apoiar os esforços de desenvolvimento da comunidade.
PARCEIROS NA BIODIVERSIDADE
O Comitê para o Desenvolvimento Comunitário do Banco de Sementes de Kathulumbi trabalha a par com o INADES (Instituto Africano para o Desenvolvimento Económico e Social). O INADES é membro activo da Rede Africana para a Biodiversidade (ABN – African Biodiversity Network). A ABN consiste numa rede de organizações Africanas presentes em 12 países, cujo objectivo é reavivar de raiz a biodiversidade e o respectivo conhecimento, a par com as comunidades.
A actividade da ABN assenta no princípio de que o conhecimento ecológico tradicional detido pelas comunidades Africanas é a chave para assegurar a longo prazo a resistência das florestas e da segurança e dignidade alimentares do continente. A ABN apoia a Coligação para a Biodiversidade do Quénia (KBioC – Kenya Biodiversity Coalition), uma parceria entre mais de 65 organizações de agricultores, grupos de defesa animal, redes de consumidores, organizações religiosas e grupos comunitários. Os membros são partes interessadas e por isso empenham-se e trabalham nas áreas do ambiente, agricultura e biodiversidade.
AS SEMENTES DE MILHO MÁGICAS CAUSAM PROBLEMAS
Porquê um banco de sementes? A comunidade da região de Kathulumbi percebeu que a produção de alimentos desceu a par com a introdução de novas variedades de sementes vindas de empresas de Nairobi. Os membros mais velhos do grupo lembraram a altura em que funcionários bem vestidos de empresas multinacionais vieram à aldeia e introduziram a “semente de milho mágica”; dizia-se que produzia mais do que as variedades autóctones. A par com as “sementes de milho mágicas”, foram-lhes fornecidos fertilizantes e pesticidas.
Nas primeiras estações, as produções aumentaram o que incentivava mais pessoas a alocar mais terreno para a produção de milho. Mas, com o tempo, os terrenos requeriam mais fertilizantes e pesticidas para combater pragas como a broca do milho. O maior desafio apresentava-se caso ocorresse um atraso ou as chuvas fossem insuficientes, pois a colheita de milho morreria antes de atingir a maturidade. Antes disto, os agricultores costumavam armazenar as sementes para a próxima estação, mas com estas novas sementes precisavam de comprar outras mais nas lojas agro-veterinárias locais, caso contrário toda a produção ficaria comprometida.
O trabalhador local chamava estas sementes de “híbridas”. Chegou mesmo a falar-se de organismos geneticamente modificados (OMG). Com o apoio da KBioC, algumas das sementes vendidas nas lojas agro-veterinárias foram testadas, concluindo-se que estavam contaminadas com OMG. Para piorar a situação, a colheita de milho começou a desenvolver aflatoxinas que podem ser tóxicas quando ingeridas.
CONSTRUÇÃO DO BANCO DE SEMENTES
A comunidade estava a ter prejuízos. Os anciãos organizaram uma reunião de conselho extraordinária para discutir os desafios à segurança alimentar com que se deparavam. Discutiram e concluíram que o maior erro tinha sido esquecerem os alimentos indígenas e tradicionais. Há um ditado Swahili que diz “Usiache mbachao kwa msala upitao”, ou seja, “Não largues o que tens na mão por uma nuvem passageira”. Os anciãos decidiram dar o primeiro passo para reavivar e revitalizar as variedades de sementes locais que sempre resistiram aos testes do tempo.
O papel das mulheres na recuperação de variedades de sementes locais foi visto como fundamental para assegurar que a comunidade de Kathulumbi seria capaz de atingir a auto-suficiência alimentar. Às mulheres mais velhas competia a tarefa de transmitir esta capacidade às mulheres mais novas e profissionais como a Mumo. O sistema de armazenamento de sementes tradicional não se referia apenas à produção, mas sim a todos os aspectos culturais. A semente era escolhida para cerimónias especiais, como a produção de cerveja de milho-miúdo para casamentos. Sementes diferentes eram escolhidas para diferentes estações. Em tempos de pouca chuva, cultivava-se a semente mais resistente. As colheitas também eram variadas e não apenas de milho. Mandioca, inhame e milho-miúdo são algumas das colheitas resistentes que foram suplementadas.
A Mumo diz que estava feliz por se ter juntado à comunidade nos esforços para reavivar e recuperar as variedades tradicionais de sementes. Com o apoio do Projecto para a Gestão de Recursos de Terrenos Áridos (Arid Lands Resource Management Project), foi construído um banco de sementes e as pessoas foram incentivadas a armazenar e partilhar variedades que estavam praticamente extintas.
Hoje, os agricultores na comunidade não precisam de comprar sementes todas as estações, uma vez que as variedades locais podem ser escolhidas e cultivadas sem comprometer a sua produtividade. As crianças já não sofrem de subnutrição ou ausência de uma dieta equilibrada. Agora, comem refeições saudáveis.
O ano de 2010 tem registado chuvas suficientes e, ainda em Fevereiro, o governo Queniano aprovou a importação de cerca de 280 mil toneladas (3.2 milhões de sacos de 90 quilos cada) de uma mistura de milho geneticamente modificado. Isto verificou-se apesar da Acta para a Bio-Segurança Queniana de 2009, que ainda não teve efeitos através da publicação de regulamentação relevante.
A caminhada em direcção a sementes seguras em Kathulumbi ainda é longa e existem vários desafios, particularmente a contaminação de OGM. Os habitantes de Kathulumbi querem que aquela região seja diversificada quanto a sementes e livre de OGM e estão empenhados em que tal se verifique. São muitos desafios mas eles deram início a uma acção pioneira.
* Anne Maina está inserida na African Biodiversity Network.
**Artigo traduzido por voluntário do programa E-volunteers da UNU, do qual o Pambazuka/Fahamu fazem parte.
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