Contusões e desafios da democracia em Cabo Verde
Com trinta e seis anos de independência e vinte anos de democracia, conquistados consecutivamente nos anos 1975 e 1991, de novo, os cabo-verdianos são convocados às urnas para o veredicto da democracia. Desta feita, tendo na arena política a disputa entre cinco partidos políticos repetentes: Partido Africano de Independência de Cabo Verde (PAICV), Movimento para a Democracia (MPD), União Caboverdeana Independente e Democrática (UCID), Partido do Trabalho e da Solidariedade (PTS) e Partido Social Democrático (PSD).
Se à data da independência o modelo do estado, marxista–leninista, unitário, corporativista e musculoso cultivado e herdado das fileiras da luta não deixou margens para a actuação de novas forças existentes na época, nomeadamente a extinta União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde (UPICV) e a União Democrática Cristã (UDC), hoje, distante, a coabitação, ou melhor dizendo, a disputa, se faz entre novas forças políticas germinadas mutatis mutandis no bojo do antigo Parido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) travestido a PAICV desde 14 de Novembro de 1980 com a perpetuação do golpe do Estado na Guiné -Bissau, conduzido por João bernardo Vieira, vulgo Nino Vieira, pondo fim à uma relação Cavalo/Burro metaforizando as posições hierarquizadas entre os dois países com Guiné a servir-se deste último.
Em 1991, mais concretamente no dia 13 de Janeiro, hoje festejado como dia da liberdade e democracia pelos dois maiores partidos – PAICV e MPD – após anos de partidarização das datas políticas nacionais, o MPD, então partido candidato ao Palácio da Várzea, venceu esmagadoramente as primeiras eleições no país, instituindo um regime semi-liberal visível na privatização das principais e mais rentáveis empresas, ancorado no Consenso de Washington.
Enquanto partido que se gaba portadora da democracia, cedo o Movimento para a Democracia, consubstanciado no governo, não tardou a gerar seus opostos. Em 1993, cingiu-se parturejando os Partido da Convergência Democrática (PCD) formado sobretudo, a nível de cúpula por ministros dissidentes que não se reviam na gestão da res pública. Na segunda legislatura, por estranho que pareça, não obstante ter vencido o MPD as eleições com maioria qualificada em 1995, de novo, o ventre deu a luz a um novo partido – Partido da Renovação Democrática (PRD) com os quais vai novamente aquela força aos votos em 2001 para ser destronada pela velha rival PAICV. Convém que se diga que tanto o PCD como o PRD foram desactivados pelos seus líderes, voltando estes, novamente, à velha casa – MPD –, onde, na actualidade, fervorosamente tentam trazer de novo este partido ao espaço do poder debaixo do velho líder, que tendo deixado a liderança deste partido no ano 2000 concorrendo às presidenciais que porém perdeu consecutivamente nesta data e na eleição seguinte – 2006.
Esta mantém-se ainda no poder contabilizando dez anos de governação em democracia mais quinze anos do período que se seguiu à independência.
Com os olhos postos num novo mandato eis que os dois velhos partidos: aquele que se posicciona como mentor da independência e o outro que se posiciona como o mentor da democracia, aceitam dar aos cabo-verdianos um espectáculo inédito, cujos contornos elegemos como posto de observação daquilo que está sendo a nova disputa e os projectos para os próximos cinco anos.
1 - Importância do debate em democracia
Se é certo que, enquanto regime político, a democracia ganhou terreno em detrimento das suas velhas rivais, também não é menos verdade que em latitudes diferentes, o seu diferencial supostamente positivo, vem-se instalando em terrenos movediços, em contextos apáticos por vezes desvirtuadores do seu ethos, pressupostos que impelem constantemente para a sua contextualização, seja em função daqueles seja também em função de novos dinamismos que cada sociedade constantemente constrói.
Pese embora ocidentalocéntrica de derivas universalizantes, susceptível de se adaptar em locus horendo, corre quando não formatada e articulada, a democracia, nos novos espaços a que galga, eminentes riscos que podem ensombrá-la, esvaziando-a conteudualmente, transfigurando-a por vezes escamoteadamente em monólogos, espectáculos e cultualização pessoal, sem que ganhos concretos sejam logrados.
Do povo para o povo, a democracia, quando capturada por protagonistas narcisistas, demagogos e populistas, o seu freio clama novas esferas públicas revalizadoras que a credibiliza tanto no que diz, no que faz, no que pretende e no que é incapaz de produzir, quer por ineficácia dos seus timoneiros quer pela oca existência da sociedade civil.
Suposto era, que o ineditismo do evento (debate político do dia 18/01/11) trouxesse elementos precisos, condensadores de propostas capazes de nortear a escolha dos cidadãos para o inequívoco futuro da nação cabo-verdiana, pelo menos nos próximos cinco anos. Ousado não seria afirmar que, de uma simples endoscopia do debate, afere-se um desgostoso espectáculo televisivo de vector único – busca de uma legitimação num passado longínquo ou recente –, provando a (in)capacidade política dos actores em presença, endereçado aos fundamentalistas partidários cuja catequese dogmática se alimenta de chavões cansativamente repetitivas dos charlatões políticos incubados no bojo do processo histórico e cultural cabo-verdiano.
Porém, sabido é que cada povo tem o político que merece. Os merecidos políticos tendem a reproduzir a imagem de uma singularidade intocável que os faz alimentar, com o consentimento da sociedade e dos media, um culto perpétuo, localizando-os num “latório” popular incontestável e venerador.
Com experiências governativas reconhecidas, os candidatos ao imperium do cargo, em três episódios demarcantes, numa estética de sedução cavalheiresca, naquilo que deveria ser um esgrimir das suas plataformas eleitorais para um adequado posicionamento dos cidadãos cabo-verdianos, quais homus frivolus, fizeram com que o debate para a eleição, ao invés de ser prospectivo naquilo que cada um deles e dos seus (partidos) tinham de melhor para a próxima legislatura, consubstanciasse na promoção da individualidade, no sobreinvestimento da ordem das aparências, ancorada numa retrospecção (passado) que em nada interessa às necessidades preeminentes do povo. O momento ouro de uma eleição (prémio e castigo), que suposto é fixar estratégias e políticas sobre o futuro, focalizou-se no pretérito.
2 - Formato e papel do jornalismo
O crescimento e amadurecimento de qualquer ser ou fenómeno não é um dado instantâneo e de via única. No que concerne a este debate político, contribuições várias concatenam-se no propiciamento da sua fertilidade e potenciação, enquanto campo de uma vital dialéctica do prometido destino cabo-verdiano.
O formato do debate e os jornalistas em presença, quanto a nós, não contribuíram para o retesar dos parcos conteúdos ali retratados e consecutivamente incapazes de produzir novos rasgos nos discursos dos actores emanados. Subserviência ou medo? O carácter generalista e a auto-castração por que perpassa a classe jornalista cabo-verdiana, bem como a natureza dos órgãos de comunicação fomentadores do debate, constituem, de entre outras, fraquezas aduzidas enquanto justificativas que naquele dia desnudou o nível dos políticos e dos projectos.
A magnitude que se esperava do evento, questiona-se se a travestidura do jornalista deveria ser do moderador ou do debatedor. Categorias posicionais e analíticas completamente diferentes nos seus aportes. Quanto ao primeiro, requer-se atributos que no limiar sejam estabelecedores de pontes, de articulações que estabilizem as parte e/ou a ordem. Já o segundo pressupõe-se uma investida estratégica espontânea, embutida e imbuída de uma tecnicidade específica, captadora de nuances constitutivas da mais-valia substantiva dos assuntos em pauta.
Imputam-se-lhes esclarecimentos e problematização de dados soltos lançados a gosto e contra-gosto como: dados concretos sobre o endividamento do país, ratio dívida/cidadão, a que juros pagar o futuro. Pois, sabe-se que “o peso da dívida recai sobre os pobres e só sobre os pobres” . Do mesmo modo, no compromisso jornalístico de uma ética para com a verdade, faltou-se uma bitola para o cálculo da taxa de desemprego. Afinal a quantos anda? Imperceptível ficou, também, pela ausência de uma adequada instigação, o avanço ou recuo na educação e na saúde.
Cabia aos jornalistas criar uma inteligibilidade recíproca, coerência e articulação entre as partes, traduzindo os seus discursos, confrontando-os com premissas de argumentações esclarecedoras.
3 - Presença da ausência na inesquecível noite 18/01/11
Ensina o realismo que a realidade não pode ser reduzida ao que existe. Por vezes, a ausência, por via do silenciamento, da supressão e da marginalização, é activamente produzida como não existente, pelo que tal procedimento não a anula .
Ausentes ficaram, assuntos concretos que influem directamente na vida das famílias cabo-verdianas e no desenvolvimento sustentável do país como: segurança, ambiente, imigração, cultura, etc.
Quando o cardápio do debate foi da autoria dos partidos e dos colaboradores, inexplicáveis tornam-se entender determinadas ausências, uma vez que as suas presenças ensombram gravemente o quotidiano das ilhas como a segurança. Pulsam e atormentam diuturnamente os cidadãos, fenómenos que redefiniram o modus vivendi do cabo-verdiano, encarcerando-o no seu habitat, os estrangeiros residentes e turistas, pondo em risco a tão propalada morabeza das ilhas e a produtividade nacional. Quem não ouviu, não viu e não se martirizou com os assaltos, os tiroteios, assassinatos selectivos perpetuados por figuras emergentes mediatizadas – thugs, gangs juvenis, assassinos de aluguer, narcotraficantes, etc.
Num país que tanto se gaba dos ganhos obtidos pelo cumprimento dos objectivos do milénio, não se entende o não agendamento do ambiente para o debate, afim de dar a perceber as propostas concretas e a sua exequibilidade e o imbricamento com os demais sectores tidos como estratégicos para o desenvolvimento nacional sustentável, mormente quando estamos a falar de um país vulnerável a todos os títulos em que demandas estruturantes de recursos (água, energia, produção alimentar) requerem uma atenção entrosada.
Assolado pela imigração, com contornos já visíveis no tecido social cabo-verdiano e na pressão que esta exerce sobre as infra-estruturas e recursos, bem como em outras demandas subjacentes, erigiu-se um silêncio sobre a questão. Não obstante iniciativas soltas vêm sendo timidamente desencadeadas por agendas obscuras quais sejam, a nossa pertença à Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a edificação da Instituto da África Ocidental (IAO), a circulação de cidadãos e produtos no referido espaço; desde logo, também, novas manobras de ancorar o país em outras pertenças como a União Europeia (EU) foram alvos de uma subalternização quiçá propositada. Se levarmos em consideração, sobretudo, que questões do tipo fomentaram na legislatura anterior dissensos arraigados em que farpas partidárias foram amplamente lançadas, não só no campo político mas também no diplomático. Aliás este último, convém que se diga, enquanto eixo estruturador, em tempos, do país, sobressaiu-se pela ausência.
Outrossim, a retórica demonstrou ser o único espaço que a cultura preenche no campo político. Um plano cuidadoso no sentido de maximizar o sector tornando-o leitmotiv de dinamização de turismo, economia, história, identidade e a afirmação da tão propalada nação global, é algo que afigura ser tabu, pelo menos no debate, e de profundo desconhecimento para os líderes em contenda. Face a esta ausência, parece crer que a dita estratégia de desautonomizar esta área merece complacência de todos.
Porém, mesmo nos temas eleitos, os contendores demonstraram a quem daquilo que era de se esperar. Afinal, nas últimas duas décadas, avançamos ou regredimos na educação, na saúde, no desemprego e na energia? Se o desenvolvimento é um fenómeno que se baliza em parte no crescimento e se este é por excelência numérico, números afins faltaram na fatídica noite. Como afirmara Bourdieu “o que é próprio a toda a correlação de forças é dissimular-se enquanto tal e não assumir toda a sua força senão por que se dissimula enquanto tal” .
4 - O candidato que perdeu o debate e que seguramente perderá as eleições
Um ar quente e pesado paira sobre os cidadãos. Efusivamente, todos com razão questionam quem foi o candidato perdedor no debate do dia 18/01/11. Permitam-nos afirmar que o empate técnico é a ordem que caracterizou o debate. Ele manifestou-se num igual tempo de governação – dez anos – em conjunturas diferentes, num discurso altamente generalista, sem dados informativos precisos e num tácito pacto do não desbravamento do futuro, pautando por evoluir em torno de preocupações que raramente, se tanto, inclui a inquietação a respeito dos limites das coisas com que os cidadãos nacionais, como tais, podiam razoavelmente (e efectivamente!) estar preocupados .
Os candidatos, com olhos no povo ou no adversário, demonstraram que “o poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações do poder” . Nestes termos, instaurou-se a hegemonização dos candidatos numa óptica fulanizada em que quanto mais os candidatos, menos os partidos e nulo o país – Cabo Verde. Pois, que se diga com proeminência Mesti Muda os líderes e Mesti Manti o país, a nação, para que “a concretização do objectivo da política possa suspender a independência dos líderes e contenha os seus egoísmos e a nação consiga em conjunto a segurança, a liberdade e a prosperidade”. Se a política é tudo, “a felicidade estará na acção política desde que devidamente precedida pela meditação” .
A nação cabo-verdiana foi a candidata que perdeu o debate. Só tememos que não venha ser também a grande derrotada na noite do dia 06/02/11 – dia da eleição legislativa. Para os próximos cinco anos, a configuração concreta será entre o mais do mesmo da década de dois mil e o mais do mesmo da década de noventa do século passado. A transcendência do princípio tertium non datur deveria ser o contrapeso de uma terceira força, seja para a arena do poder conquistar, seja para aquele coligar-se afim de evitar ditaduras democráticas, cenário que pouco se vislumbra a curto prazo atendendo à debilidade das ditas forças.
5 - O debate do debate: o superavit académico
Ciente de que o poder não é um negócio da verdade e de que nele diz-se o necessário para reprodução de si, um debate político que se preze, sobretudo no contexto em que estamos a referir, deveria ser um locus de confrontação saber-poder. Inaugurando novos protocolos de comunicação e de relação entre os campos em questão, põem-se em marcha uma articulação profícua na justa medida em que aquele, com os seus outputs, desoculta os mistérios deste, racionaliza os projectos, cria inteligibilidades e realismos encrostados em experiências, em modelos alternativos, superando as falácias e exumando os custos lato senso . Como quem diz, retira os pensos, as ligaduras à múmia e a analisa o que está lá dentro. Num tempo em que a rede e os nós que a enforma constituem configurações sobre as quais o ganho é produzido, para credibilizarem os seus discursos, as suas práticas, os agentes são convocados a se enrouparem, procurando sinergias outras.
Contudo, para o poder pensar é perigoso, visto que, pensando destrói-se tacitamente os estratos do bom senso e do senso comum, ou seja, do pensamento normalizado e da opinião generalizada, porque, tal como o artista, é necessário entrar no caos para operar no plano de imanência . Talvez seja esta a contextualização possível a efectuar-se sobre as reticências do debate político no mundo académico ou do recrutamento dos elementos do mundo académico para o mesmo. No seio deste ou com este, a academia poderia enriquecer sobremaneira os assuntos em pauta ou em falta, esclarecendo sem o temor do espectro da perseguição, marginalização que às vezes atordoam a mente de alguns profissionais dos media.
Em outras paragens, quando não realizadas no mundo académico, as horas/dias que se seguem ao debate são preenchidas com analistas políticos oriundos do mundo académico, com conhecimentos e/ou investigação na matéria, descomprometidos com a lógica partidária, para em abono da verdade e da ciência avaliarem os discursos, as propostas, as viabilidades e o ónus de encargos que medidas avançadas acarretam. O que feito disponibiliza ao eleitorado mecanismos com os quais passaria a decidir de uma maneira mais informada e menos sujeita à instantaneidade que caracteriza, hoje, fenómeno da votação. De resto, reconhece-se também que há coisas que se sabem no saber mas são ocultadas no saber político, justamente porque se fossem ditas seriam um impedimento a que se conquistasse o poder. Aqui jaz a disjunção necessária entre o saber e o poder, útil ao poder, porém inconveniente ao saber. Mecanismo que visa oferecer o circo para distrair o saber.
* Redy Wilson Lima – Sociólogo; Aquilino Varela - Historiador e Doutorando em Cìência Política; Quintino Tavares – Jurista
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