Moçambique: 33anos depois da independência nacional
Em 33 anos de sua existência, o Estado moçambicano ainda não ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais – PIDESC (ler caixa antes, caso não esteja familiarizado com este assunto). Ao não ratificar, revela-se incoerente: as constituições de 1975 e de 1990, Declaração Universal dos Direitos Humanos, Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Plano Prospectivo Indicativo, Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta, Agenda 2025, Objectivos de Desenvolvimento do Milénio e demais directrizes (inter)nacionais de direitos humanos e desenvolvimento vinculam aqueles direitos (económicos, sociais e culturais), por Moçambique tê-los instituído internamente como sua bússola para a materialização de justiça social - a tão almejada providência desde os tempos de luta de libertação e independência nacionais, até aos dias de hoje... Minha perspectiva, aqui, é de um simples jornalista e defensor de direitos humanos, e é possível que ela não corresponda a quem tenha fundamentos teóricos e legais apurados e abastados. Vamos, então, ao conteúdo:
1. Da FRELIMO à Luta de Libertação
Quando é criada a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em 1962, os movimentos de libertação nacional dos países outrora colonizados invocaram os direitos humanos, para exigirem o desmoronamento da dominação, opressão e exclusão sociais a que os seus povos estavam submetidos pelo sistema colonial.
Aqui, em Moçambique, a FRELIMO, porque congregador, na altura, das aspirações dos moçambicanos, exigiu da administração colonial portuguesa o direito à autodeterminação dos povos reunidos em seu território nacional, com o objectivo de se constituir em uma unidade política e social, para internamente lutar pela implementação dos direitos humanos.
Desta maneira, a luta pela implementação progressiva de direitos humanos, em Moçambique pré-independente, fertilizou-se e fortificou-se porque o Direito Internacional dos Direitos Humanos assim o favorecia: Na Organização das Nações Unidas já tinha sido adoptada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948, que defende a autodeterminação, a não escravidão, a liberdade, a igualdade e o desenvolvimento pleno dos povos, dentre várias previsões que protegem as pessoas enquanto sujeitos de direitos. Da DUDH advieram dezenas de instrumentos internacionais de direitos humanos que conferiram cobertura moral, legal e legítima pela autodeterminação e direitos humanos. Um desses instrumentos é o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adoptada pela ONU em 1966. A sua não-ratificação pelo Estado moçambicano terá despertado a minha atenção para escrever estas linhas, tendo em conta a similitude entre o PIDESC e as demais directrizes nacionais e internacionais de direitos humanos e desenvolvimento, como veremos por todo o texto que se segue.
Fazendo fé aos documentos da FRELIMO, enquanto movimento de libertação nacional, a independência, educação, saúde, agricultura, alimentação, emprego, habitação, mulher, criança e outras áreas tiveram consideração como áreas de direitos humanos a implementar progressivamente, depois da conquista da independência. Aliás, já nas zonas libertadas existira programas e actividades para a satisfação daquelas necessidades humanas, facto que concorre para que concordemos que, patriótica, teórica e historicamente, a implementação dos direitos económicos, sociais e culturais já constituia objectivo das elites políticas de Moçambique pré e pós-independente. Documentalmente, podem confirmar o Relatório do Comité Central da FRELIMO ao 3º Congresso (1977); A vitória constrói-se, a vitória organiza-se: Mensagens do Secretário do Departamento de Defesa, Samora Machel, nos anos 1967 a 1974 (editado em 1977); Samora Machel: No trabalho sanitário materializemos o princípio de que a revolução liberta o povo (1973), editado em 1979; Machel of Mozambique de Ian Christie (1988); Lutar por Moçambique de Eduardo Mondlane (1975) e demais documentos.
1.1 Direitos humanos, Governo de Transição e Independência Nacional
O Governo de Transição em 1974, dirigido por ex-estadista moçambicano, Joaquim Chissano, postulara a autodeterminação de moçambicanos, através da Independência Nacional. O objectivo desta, dentre vários, era de devolver e reerguer a dignidade humana do povo moçambicano, que fora destruída e descartabilizada pelo sistema de opressão colonial português.
Ainda em 1974, 20 de Setembro, Samora Machel, no documento “Samora Machel: A Luta Contra o Subdesenvolvimento”, editado em 1983, afirmara que “a independência que se avisinhava...destinava-se a liquidar a fome, a nudez, a falta de alojamento”. Mais: “Significava trabalho para o aumento da produção e da produtividade e permitia acabar com o desequilíbrio entre a cidade e o campo, difinindo a agricultura como base e a indústria como factor dinamizador do nosso desenvolvimento”.
Meses depois, já em um território que se designara República Popular de Moçambique (e não mais província de Portugal), o discurso de Machel, no dia 25 de Junho de 1975, referenciado no documento do parágrafo anterior, assinalara alguma convicção para com os direitos económicos, sociais e culturais, ao afirmar que “importa proceder a uma análise fria, sector por sector, da vida económica, social, educacional, cultural e sanitária do nosso País, a fim de formular os melhores métodos de combate. Será essa a primeira tarefa do nosso Governo”.
Por outro lado, importava “solucionar os problemas de desemprego, da miséria, do analfabetismo, das crianças abandonadas e prostituição”.
Um outro documento de 55 páginas, intitulado FRELIMO: Programa e estatutos, referente ao 3º Congresso de 1977, revela o que qualifica de “objectivo supremo” do Partido-Estado de edificar em Moçambique “uma sociedade totalmente livre da exploração do homem pelo homem, onde as condições materiais de vida do Povo melhorem continuamente, e onde as necessidades sociais sejam satisfeitas de modo crescente”.
Além da priorização dos esforços internos para a satisfação progressiva das necessidades básicas, Moçambique teria definido uma política de relações internacionais e de cooperação económica que servisse aos interesses do povo, em resposta e respeito ao artigo 4º da então Constituição da República Popular de Moçambique que prevê “o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados”. Desta maneira, segundo o documento “Samora Machel: A luta Contra o Subdesenvolvimento”(1983), Moçambique contava com o apoio das nações africanas amigas, da solidariedade internacionalista dos países socialistas e em desenvolvimento e das forças progressistas de todo o mundo.
Deste modo, compreendendo as relações internacionais e de cooperação para o desenvolvimento, Samora Machel e o Partido-Estado não pouparam esforços, conscientemente, de responder ao artigo 2º do PIDESC, embora não ratificado desde o ano da Independência Nacional, que espelha que “cada Estado-parte, no presente Pacto, compromete-se a adoptar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente económico e técnico, até ao máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adopção de medidas legislativas”.
2. Constituição da República Popular de Moçambique e PPI
A Constituição da República Popular de Moçambique (CRPM), que vigorou até 1990, previa nos seus articulados “a edificação de uma economia independente e a promoção do progresso cultural e social” e “a defesa e a consolidação da independência e da unidade nacional” (art.4).
Para o efeito, segundo a mesma constituição, “a República Popular de Moçambique, tomando a agricultura como base e a indústria como factor dinamizador decisivo, dirige a sua política económica no sentido da liquidação do subdesenvolvimento e da criação das condições para a elevação do nível de vida do povo trabalhador” (art.6). Paralelamente, o trabalho (art.7), economia (art.9), combate contra o analfabetismo (art.15), saúde (art.16) e relações de género (art.17) faziam parte da lista de direitos (económicos, sociais e culturais), protegidos e dignificados, progressivamente.
Já o artigo 8 da CRPM, confere um argumento para os propósitos deste texto, ao afirmar que “a República Popular de Moçambique reconhece a Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados adoptada pela XXIX Sessão da Assembleia Geral da Organização das Naçãoes Unidas”. Esta colocação jurídico-constitucional da então CRPM confere legitimidade para que se afirme que o Estado moçambicano sempre sinalizou interesse-protector para com os direitos económicos, sociais e culturais, mostrando incoerência, por não ter ratificado o PIDESC, já antes de 1990. Um outro dado revelador de incoerência é o facto de o PIDESC ser herança do socialismo internacional, linha de orientação política e económica que vigorou, em Moçambique, até 1990, em meio aos vícios da guerra fria, que separava os liberais, de um lado, e os socialistas, de outro.
Em 1980, a então Assembleia Popular, em sua VIII Secção, aprova o Plano Prospectivo Indicativo - PPI (1980-1990), com o objectivo de, em 10 anos, “promover o aumento de nível de vida de todo o nosso Povo, com vista à satisfação das suas necessidades básicas” e, ainda, pretendia-se “atingir a felicidade e o progresso do Homem moçambicano...”.
Naquela Sessão, o então presidente de Moçambique, Samora Machel, alinhara-se ao conteúdo do PIDESC, ao afirmar que o PPI permite “eliminar a fome, a nudez, a miséria, a pobreza e a ignorância”. “Nesta década, faremos nascer novas cidades, novas vilas...Através da industrialização aumentaremos significativamente os efectivos da classe operária. Através da educação e da qualificação da força de trabalho, transformaremos os moçambicanos analfabetos em agentes dinamizadores da ciência, da técnica, da cultura”.
2. CRM e ratificação do PIDESC
Em substituição à anterior CRPM, a Constituição da República de Moçambique (CRM), de 1990, inaugurou a fase de construção do Estado de Direito Democrático. Na CRM, cuja última revisão e aprovação aconteceu em 2004, encontram-se os fundamentos de direitos humanos sobre os quais o Estado moçambicano deve assentar-se, expressando, por essa via, o respeito à dignidade humana, por um lado.
Por outro, a CRM introduziu, assim, o irrefutável processo de reforma e consolidação legislativa das direitos, garantias e liberdades fundamentais dos cidadãos, jamais visto em Moçambique independente, constantes igualmente dos instrumentos internacionais de direitos humanos (exemplo: Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CDH) e Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDM). Todos esses documentos fazem parte da legislação moçambicana, porque ratificados pelo Estado moçambicano, excepto o PIDESC, cujo questionamento dessa atitude propositada e negligente do Estado moçambicano permeia todo este texto.
Segundo a CRM, no seu artigo 11, o Estado moçambicano objectiva a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação de bem-estar social material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos (c); a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e equilibrado (d); a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a Lei (e). Pelo conteúdo desse objectivo do nosso Estado, percebe-se, com clareza, que a Constituição moçambicana defende os direitos económicos, sociais e culturais, sistematizados em Pacto (PIDESC). Há que notar que o objectivo do Estado moçambicano de respeitar a dignidade humana se desdobra nos demais instrumentos internacionais de direitos humanos – desde os ratificados até aos negligentemente não-ratificados.
Por assim dizer, os direitos constantes do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais estão consagrados dos artigos 82 a 95 da CRM, a saber: o direito de propriedade e a protecção contra a expropriação ilegal (art.82); o direito à herança (art.83); o direito e o dever do trabalho, da livre escolha de profissão e a proibição do trabalho forçado (art.84); o direito à retribuição e segurança no emprego (art.85); liberdade de associação profissional e sindical (art.86) o direito à greve (art.87); o direito e dever de educação (art.88); o direito à saúde e ao livre acesso aos serviços sanitários (art.89); o direito ao ambiente saudável e o dever da defesa do ambiente (art.90); o direito à habitação condigna e urbanização (artigo 91); o direito a um consumo de bens e serviços de qualidade e sem riscos (art.92); o direito à cultura física e desporto (art.93); o direito à liberdade de criação cultural e à protecção da propriedade intelectual (art.94); e o direito à assistência na incapacidade e na velhice (artigo 95).
O posicionamento do Estado moçambicano de não ratificar o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais e, por via disso, materializar sistematicamente aqueles direitos, como políticas públicas, estremece o já adoptado Direito Internacional dos Direitos Humanos pela CRM, tal como prevêem os artigos 17 nr.2, 18 nrs. 1 e 2, e 43 respectivamente. Tal estremecimento revela-se pela fraquíssima clareza de comprometimento nacional e internacional do Estado moçambicano perante os direitos económicos, sociais e culturais, cujo gozo pleno dos mesmos é tido como se de um luxo se tratasse, quando, efectivamente, é um bem de todos: há que se interiorizar que ter vida, saúde, hospital, ambulância, médico, medicamentos, água, pão, manteiga, iogurte, sumo, leite, arroz, feijão, bife, salada, peixe, camarão, queijo, educação, escola, habitação, mobiliário, emprego, férias, salário, infantários, salas de cultura e de lazer, biblioteca, campos desportivos, agência bancária, créditos bonificados, estradas, pontes, transportes, energia, campos agrícolas, gado, indústria, supermercados, aparelhos de comunicação, meio ambiente são e liberdade, no seu sentido amplo – tudo isso e, mais, de qualidade – não tem que ver com o status do indivíduo, como explícita e implicitamente nos faz crer o pessoal serventuário da crueldade (inter) nacional, mas, sim, o facto, e simplesmente isso, de ser pessoa humana. Por isso que os direitos humanos se fundam na dignidade humana – e não na classe social, etnia, raça, crença, sexo ou outro atributo social do indivíduo. E a sua violação, não raras vezes, mobiliza vozes internas e/ou externas, por os direitos humanos das pessoas não serem matéria exclusiva do ponto onde tenham sido violados, mas do mundo. Aqui, há a percepção de que cada ser humano é detentor do que posso chamar de direito humano ao cosmopolitismo ético: ele não só pertence à sua nacionalidade, mas, também, ao mundo todo, porque, em matéria de direitos humanos, é protegido e defendido internacionalmente, mesmo que os seus, localmente, ignorem a sua causa ou sofrimento.
2.1 O que dizem os defensores de direitos humanos?
O Relatório da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos sobre Ratificação e Implementação dos Instrumentos Internacionais dos Direitos Humanos em Moçambique, 2005, aponta que “a ratificação por Moçambique do PIDESC conduziria a que as respectivas normas vigorassem na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vinculasse internacionalmente o Estado moçambicano, nos termos do artigo 305 da CRM”.
Contrariamente, “a não-ratificação do Pacto tem consequências ao nível dos programas económicos, sociais e culturais de Moçambique”, por lhes faltar, segundo o relatório, uma “perspectiva de direitos humanos, ou seja, por não serem políticas sócio-económicas correctas”.
Exemplo do que se diz, segundo o documento em citação, está patente na Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, cujos objectivos estão longe de se atingirem, porque assenta na ideia de que o desenvolvimento económico e do mercado seriam suficientes para o alcance dos objectivos de plena segurança alimentar perseguidos pela estratégia. A corroborar com esse raciocício, a LDH questiona o pleno acesso físico e económico por todos com recurso a meios próprios: é que acredita-se que o aumento da renda no âmbito do combate à pobreza vai fazer com que as pessoas gastem mais numa alimentação equilibrada.
Sobre o assunto, o sociolólogo moçambicano Book Sambo, em uma entrevista de 2007, publicada simultaneamente no e