As Dimensões da Independência

Neste artigo, Fernando Teixeira faz uma delicada análise da situação política de Guiné Bissau por ocasião de sua independência política. Passados quarenta anos de libertação, o que resta ao povo guineense hoje em 20113? Este é seu questionamento, ainda há muito trabalho a ser feito em Bissau em prol de uma sonhada equidade social.

I. O ORGULHO: ESSE MARAVILHOSO DIA

Quarenta anos de existência como País independente. Quarenta anos de imensa e permanente alegria. Quarenta anos de dor e sofrimento. Quarenta anos… toda uma vida. Quem nasceu nesse maravilhoso ano da Proclamação já é homem feito; adulto; com filhos, e quem sabe até com netos.

Nesse dia maravilhoso, os majestosos Rios da Guiné, depois de séculos de dor e esperança, rebentaram finalmente os diques da dominação e as barragens da nossa submissão, para correrem livre e gloriosamente, levando-nos no turbilhão das suas águas revoltas.

Nesse dia maravilhoso, o sonho centenário tornou-se real e os nossos seres foram preenchidos por algo tão novo que ninguém conhecia, de tão inexplicável que só se interiorizava, de tão intenso que regozijava a alma, tão imenso e ardente quanto a felicidade humana e o Sol podem ser.

Aqueles nossos avós que não viveram para assistir esse dia, não assistiram a glória na Terra, nem a transcendência do Homem Guineense, chegando por fim, ao fim da sua História. Mas morreram na esperança de que nós, seus netos, um dia seriamos livres, na nossa pátria livre, e caminharíamos confiantes pelos trilhos desta terra, entre os vivos, sentindo o calor de outros homens livres, sentindo o calor do Sol nas nossas faces radiosas.

Sobre estes quarenta anos quero escrever, antes de partir, as histórias de vidas dos que os assistiram e ainda estão vivos para contar; dos que os viveram e já morreram sem poder assistir o dia da Redenção. Não quero esquecer deles neste dia: aos que morreram antes desse dia, quero dedicar estas linhas. Aos que morreram antes, para que o dia de Libertação fosse realidade, um dia. Aos que foram mortos, como pagamento, por terem feito esse dia nascer com as suas mãos, corações e sonhos. Aos que morreram, infelizmente, porque esse dia chegou, embora a tivessem desejado tão ardentemente, como aqueles que os mataram. Aos que morreram, apenas por que estavam vivos, vivendo por fim na sua terra liberta, depois desse dia. A todos os que morreram porque o ódio e a maldade foram maiores que o perdão e amor. A todos esses quero lembrar hoje, as suas histórias de vida, mais do que as suas mortes. A eles a minha póstuma homenagem para a eternidade.

Escrevo para dizer que cada um de nós, morto ou vivo, bom ou mau, carrasco ou vítima, é uma folha na árvore da Nação e cada um deve ter a importância devida. E como as folhas secas que adubam o chão para fortalecer a raiz da árvore mãe, os nossos mortos adubam a raiz da Árvore-Nação. Essa Nação, que um dia existirá viva e pujante, mesmo que agora é apenas um sonho dentro dos nossos sofridos peitos. Ela será eterna, dentro da nossa esperança que ainda se mantém, depois de “séculos de dor”. Ela será realizável dentro dos nossos sonhos, sonhos que um dia serão reais na sua concretização, pois serão “frutos das nossas mãos” e “flores do nosso sangue”.

II. A CRENÇA: VALEU A PENA A INDEPENDÊNCIA?

Hoje, embora dia de festa, não posso falar apenas de “factos” políticos, “acontecimentos” sublimes e “proclamações” oficiais, sejam elas boas ou más. Pois como posso falar destes anos passados, deste sofrido País, se não falo dos seus filhos? Das suas dores e alegrias, do seu amor profundo a esta pequena Pátria que Deus nos deu? Quero contar dessa gente, deste sofrido povo, para que o meu contar faça com que um dia, estes quarenta anos não sejam apenas lembrados como um longo pesadelo na nossa história; ou como apenas um interregno infeliz, na longa caminhada do nosso povo.

É minha obrigação acima de tudo falar deste Povo e desta Nação. Mas tenho que fazer uma pergunta sacrílega que atravessa toda a nossa existência comum, todos estes amargos anos, aquilo que somos, aquilo que não fomos. Uma pergunta nunca feita, que apenas existe no nosso subconsciente colectivo como povo. Uma pergunta que jamais será feita, pois é uma pergunta sem resposta. E mesmo assim, hoje, volvidos tantos anos, a pergunta que se impõe é: Valeu a pena a Independência?

Muito se tem escrito sobre a Guiné “Pôs Independência” – referindo-se a estes 40 anos com base em análises económicas, sociais e culturais. A maioria destes escritos nos chega acompanhada de um sentimento de amargura ou revolta, com dor ou com pena, mas raramente com alegria e satisfação. Mas o que mais caracteriza este sentimento é um misto de desilusão, resignação e raramente de esperança. Um sentir ambíguo, feito de orgulho ferido, frustrações, vidas destruídas, filhos perdidos, pais perdidos, sonhos destruídos por gente que nunca fizeram mal algum nas suas pobres vidas de cidadãos pacíficos que são. Só temos uma vida para viver, breve e efémera, e de nada serviu se apenas vivermos.

“Valeu a pena a Independência?”. Pois no nosso caso – mais do que todos os povos africanos -, ela foi a mais traumática, a mais esbanjada, a mais desprezada. Ouso dizer que na África inteira, fomos nós que mais desperdiçamos a nossa Independência e o nosso Povo. Na verdade nunca se respeitou este povo, nem por uns breves instantes. Quanto mais ama-lo…

O povo representa todas as coisas que na verdade são importantes: tudo o que sou culturalmente, intelectualmente, as minhas relações humanas, a minha vida, a minha tradição, a minha língua, a minha família, a totalidade da minha inteligência, tudo isso devo em primeiro lugar ao meu povo. Dele provem os meus ancestrais e a ele retornarei, como seu filho. E só somos porque ele é. E só seremos enquanto ele for. É apenas esta compreensão que deve nortear todo o nosso credo e discernimento.

Como vós, nasci deste povo, desta mãe terra; cresci no meio deste povo; só vejo e entendo o mundo desta maneira, porque o vejo e entendo-o através dos olhos do meu povo, através da sua cultura, através da nossa forma de ser; e sou o que sou, bom ou mau, feliz ou infeliz, porque nasci nesta terra, no seio deste povo, que devemos amar mais do que tudo nas nossas vidas. E nele terei orgulho, pois nele me revejo, e é nele que devo ir buscar a energia vital para continuar.

Só temos orgulho em nós mesmos se tivermos orgulho nele. Sem orgulho nele, não o podemos amar. Só somos verdadeiramente humanos a partir da decisão de amar o povo mais do que a nós mesmos. E só amamos na verdade a nossa Pátria quando amamos os seus filhos.

E a pergunta “valeu a pena a Independência?” tem união intrínseca com estas verdades. Onde esta a Independência na vida deste povo? O que lhe trouxe de bom a Independência? O real, o palpável, a melhoria de vida. Afinal esquecemos que a Independência era para isso mesmo? Presidentes, ministros, parlamento, selos, moeda própria, são apenas acessórios daquela realidade que demonstram que o povo existe e é respeitado.

Mas para responde-la temos que nos refutar visceralmente dizendo que esta pergunta nem se põe! No sentido que nós no fundo “nunca nos arrependemos” de ter sido independentes e nem da gloriosa Luta de Libertação Nacional e Secular para alcançar esta aspiração, apesar de todos os pesares e contrariedades destes anos. Apesar de tanto tempo perdido. Apesar de tantos sonhos lançados ao vento e de tantas e tantas vidas desperdiçadas… Pois de outra forma como podemos continuar a viver?

Não escrevo apenas porque devo assinalar, na História, os nossos quarenta anos de caminhada. Deixo estas linhas, na esperança de que um dia alguém que ainda não nasceu, mas que nascerá amanhã, dia 24 de Setembro de 2013, os encontrará. Para que os nossos vindouros saibam que também fomos homens dignos, esperançosos, com imensos sonhos para com o porvir da nossa Pátria e a felicidade dos nossos filhos. E que, também, como outros homens neste mundo, almejamos a ventura de poder deixar para eles uma Nação da qual viessem ter orgulho de pertencer. E se nada conseguimos, se nada deixamos, pedimos desculpas, por isso e por muito mais. Mas só aceitarão as nossas desculpas se entenderem “como foi temperado o aço” e porquê que do seu cadinho não saiu a Pátria moldada conforme os moldes pelos quais se regem todos os outros seres humanos no mundo.

III. O AMOR: EXISTE UM PAÍS, UM POVO?

Mesmo quando um povo possa não tem um território que possa chamar pátria, quando ela é uma nação de facto, formada por seres humanos claramente pertencentes não apenas a uma terra, mas com uma mesma visão do mundo, pode sobreviver. Por isso a nossa Pátria não são apenas as terras, as florestas, as bolanhas, os rios e o nosso maravilhoso mar, a Pátria somos nós, os homens, as mulheres e crianças, todos filhos desta terra e filhos dos seus filhos nascidos ou não neste triângulo. E não só, pois o Estado-Nação é feito também dos nossos sonhos, das nossas realizações, do nosso passado e presente, dos nossos mortos, das nossas vidas individuais, do nosso amor ao nosso berço.

Escrevi várias vezes que devemos que amar o nosso povo acima de tudo; que devemos ama-lo mais do que merece, se preciso for. Mas amar não basta; amor sem obra, sem realizações, sem nada fazer pera mitigar a sua sorte, é inconsequente. Mas se lutarmos todos nós pela nossa pátria, mesmo que através dos nossos sonhos pessoais, desses sonhos criaremos a nossa pátria feita de verdes rios cristalinos, do nosso azul mar Atlântico, dos verdes arrozais, amarelos milharais, de florestas densas e chuva forte, para por fim sermos felizes. Felizes só na nossa terra, só entre os nossos, e só no dia em que sair pelas ruas, andar pelas tabancas e vilas, cidades e campos e ver estampado na face de todas as crianças, filhos do povo, o sorriso de felicidade e gratidão. Ser feliz quando nos seus olhos ver a confiança no porvir sem medo. E se preciso for, morrer – e morrer feliz – para alcançar esta aspiração, essa morte será a mais doce das mortes. Pois o sorriso de uma criança vale mais que todos os diamantes de Angola.

É nesta profunda crença que ultrapassa o meu ser, que sei que todos vós, de igual modo que nós, temos as mesmas preocupações, os mesmos sofrimentos, o mesmo desejo profundo de fazer da nossa Pátria um grande País. É nesta crença inabalável no homem Guineense, que gostaria que estas reflexões deixassem de ser apenas minhas e se tornassem de todos. Sinto com todo o meu ser que todos os atropelos a legalidade, todos os abusos, todas as vergonhas, todos os males e aberrações que são infligidos a esta Nação, são sentidas profundamente por todos aqueles que realmente amam a sua terra, de igual modo como eu os sinto.

Pátria, nação, povo, país, existem realmente? Esta que é a pergunta seguinte, cuja resposta, responde a outra. E ela é dirigida a todos nós de maneira individual. Pois embora saiba que a responsabilidade do nosso descalabro é tão individual como colectiva, não a posso dirigir ao Povo, no seu conjunto. Sim, a pergunta impõem-se, de uma forma ou de outra, dentro e fora do país. Pois se a pergunta “não se põe”, se não está dentro de nós, então de onde vem esta sensação de perda, de vazio, de sofrimento, que nos assalta de “tempos em tempos”, mas que nunca nos deixa?

A nossa vida comum como Nação, como Povo, teve significado? Foi vivida condignamente? Que cada um responda, a si próprio, com honestidade e coragem, segundo a sua consciência e segundo os seus actos individuais, independentemente das funções desempenhadas, cargos ocupados e organizações nacionais e internacionais a que se pertenceu nestes últimos 40 anos que vão passar hoje a meia-noite. E a vossa resposta, a vós mesmos, aos vossos filhos, será o início de uma nova relação com o vosso País e Povo. Pois se “somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer”, então não há por onde escapar. E aceitemos ou não, existe a responsabilidade política e a responsabilidade moral. E não se pode fugir de ambas eternamente.

Pois não devemos esquecer que no que concerne a Pátria “somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer.” É no amor profundo à Pátria é que começam todas “as grandes realizações”. Aquelas que ultrapassam o homem “como individuo” ou “como cidadão isolado” e só o alcançam, dentro do Povo, como elemento desse povo, como parte insofismável do povo. E nesse sentir pugnar pelos seus direitos apenas e só, depois de o povo adquirir os seus. Querer a sua liberdade só, depois de povo ter a sua liberdade. Querer a sua felicidade só depois da felicidade do povo. E as “grandes realizações” só podem ser consumadas por esse homem que existe para além de si próprio. Este homem que deixará de ser o que é ordinariamente, para existir apenas em função do povo, na realização do povo, e ser o demiurgo do povo.

IV. A PROMESSA: NO IÇA NÓ BANDERA… BANDERA DI POVO…

Quando era pequeno cantei como muitos de vós“no iça nó bandera, bandera de povo” e é dessa crença que ainda vivo feliz ou infelizmente. Daquela crença que nos dizia “anoss Guineenses, anoss i um son son”. Neste dia de celebração e alegria, lembramos, com orgulho e emoção, quando pela primeira vez cantou-se, na nossa terra livre, “no iça nó bandera: bandera di povo”, há 40 anos.

Aquele dia foi o da independência, do orgulho e da Redenção que esvaíram-se em delírios, como os ventos que sopram no nosso mar, mas voltarão. O orgulho voltará, a independência com ele e a Redenção por eles.

A redenção que chegará depois de cada um de nós se libertar a si mesmo e tomar a decisão de não voltar a viver como até hoje. Tomar a decisão de ser um homem livre na sua terra livre. Tomar a decisão de finalmente vencer a cobardia e ser por fim um homem que fará tudo que puder para dignificar a sua existência, a sua Pátria e a sua Nação. E seremos então esse homem, que juntamente como os outros iguais, será a elite que não aceitará o que os seus pais, covarde e erradamente, aceitaram. Esse homem será aquele para quem trabalho, por quem pugno, aquele que será o “Puro Guineense”. Pois a pureza não vem do sangue, nem da cor da pele, nem da tribo, instrução ou nível cultural. A pureza não é externa, ela se encontra no âmago da existência, no fundo do coração, nas profundezas da alma e a sua medida é só uma: o amor a Pátria e ao Povo.

E nesses pressupostos, que considero como evidentes por si mesmos, entendo que a Independência, tem duas dimensões: A real, a factual, feita de datas, símbolos, actos, locais físicos, etc., e a espiritual feita do “sentir profundo de um povo”, da sua vivência, das suas lutas diárias, dos seus sonhos, da sua história comum e do seu heróico passado.

Mas independentemente destas dimensões, ela é feita principalmente da promessa. Na promessa do “radioso futuro”, do almejar da redenção, que a Independência como conceito, como realidade insofismável, como promessa possível, contem em si mesmo.

Por isso hoje falo dessa promessa, desse “Dia da Independência” e de todos os “outros dias” que sucederam a esse primeiro; vou falar desse que foi o dia mais maravilhoso ainda vivido pelo nosso povo. Do dia em que soubemos que não éramos nem menos nem mais do que todos os outros povos deste mundo: Apenas iguais.

E como iguais não somos nem mais burros nem mais inteligentes; e como iguais não merecemos nem mais nem menos. E como iguais queremos “viver igual” com todos os seres humanos neste mundo. E esse querer ninguém nos pode tirar, pois é esse querer que na verdade, em último caso, nos faz “iguais” a todos os povos deste mundo. E é esse querer que realizará um dia, por fim, a “Promessa”.

É a “promessa” que sustenta a “Independência” e não a História, os actos, os feitos e as datas comemorativas. É a “promessa” que nos une e nos impelirá para frente, contra todos os reveses da vida. É a “promessa” que nos faz viver cada dia, pois é na promessa que se casam a dimensão real e a espiritual da Independência.

É a “promessa” – embora saibamos com dor que não assistiremos a sua concretização – que faz com que tudo valha a pena. E por fim, é a sua realização que responderá a pergunta se “Valeu a pena a Independência”.

É desta promessa que falo quando falo deste povo – que é o meu povo -, desta gente – que é a minha gente – que tudo sofreu e tudo sofrerá de novo, se assim for preciso, para que o dia da Redenção chegue.

Um povo que não exige a felicidade, mas apenas a promessa de viver condignamente. Este povo, que um dia cumprirá o seu destino e será igual aos outros povos do mundo, construindo juntamente com eles o futuro da humanidade.

Atentamente.

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*Fernando Teixeira contribuiu para o site www.gbissau.com onde este artigo apareceu primeiramente.

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