Cultura do machismo destrói o sonho das mulheres
O casamento é uma oportunidade para o amor e a realização, mas para muitas mulheres significa abandonar os seus sonhos. São proibidas de trabalhar e as suas amizades e visitas à família são controladas.
O casamento é uma oportunidade para o amor e a realização, mas para muitas mulheres significa abandonar os seus sonhos. São proibidas de trabalhar e as suas amizades e visitas à família são controladas.
Mais de metade das mulheres na cidade de Maputo, segundo os dados do Inquérito Demográfico e de Saúde (IDS) 2011, em Moçambique, participa na tomada de decisões na família. E, no entanto, ainda há muitas que não podem decidir por si mesmas e que devem obediência ao marido ou parceiro, num claro ditado das normas patriarcais. São proibidas de trabalhar, de estudar e de realizar os seus sonhos profissionais.
Mesmo que os maridos ou parceiros tenham rendimentos que lhes permitam sustentar a família sem necessitar que a esposa ou parceira tenha um trabalho independente, isso impede a autonomia das mulheres. Para além de o trabalho proporcionar rendimentos independentes, permite também a realização profissional, muito importante para a auto-estima de qualquer pessoa.
“Dependo do meu marido”
Mafalda tem 40 anos, é natural de Gaza, vive no bairro das Mahotas, Maputo, está casada há seis anos, e tem três filhos. O marido trabalha na África do Sul. Antes de se casar, Mafalda teve vários namorados, mas nunca viveu maritalmente. “O meu marido diz sempre que não devo sair para conversar com amigas ou vizinhas, porque elas vão-me desvirtuar”, disse Mafalda.
Do mesmo jeito que ela é proibida de conversar com as vizinhas, também não pode trabalhar. “Sempre quis fazer algo diferente, ser como outras mulheres que trabalham, vendem, mas o meu marido não aceita isso, por nada. Diz que se eu trabalhar vou começar a abusar dele”, afirmou. O marido da Mafalda trabalha na África do Sul há mais de 15 anos, e vem a casa cinco a seis vezes por ano. Tanto quanto ela sabe, o marido não tem outra esposa.
Todos os meses faz o rancho da casa, mas isso para a esposa não basta. “Sou mulher, e por vezes quero comprar algo como uma bolsa, certas roupas, mas não posso, tenho de pedir e por vezes ele não dá”. Mafalda disse ainda que a família do marido também contribui para que ela seja dependente. “Já lhes disse que eu quero fazer negócio, mas dizem que eu não devo desafiar o meu marido, porque ele é que manda e eu devo obedecer. Se não, fico sem lar, e eles não me vão aceitar de volta”. “A mulher que não segue as decisões do marido é vista como uma que está a estragar a cultura”, lamenta-se Mafalda.
“Já trabalhei como doméstica, mas por causa de ciúmes parei”
Vitória, de 39 anos, reside no bairro Maxaquene “D”, foi lobolada e vive maritalmente há seis anos. Teve um relacionamento anterior, mas separou-se. Antes de passar a viver maritalmente, trabalhou como empregada doméstica numa flat no bairro Central, durante dois anos. Mas quando foi viver com o parceiro tudo mudou. “Começou a proibir-me de trabalhar porque o meu patrão era solteiro. O meu marido começou a desconfiar de mim, dizia que ele me assediava e eu já era uma mulher de família, tinha que me dar ao respeito”, disse Vitória. A nossa fonte garante que implorou ao marido para que a deixasse trabalhar, porque ela não queria ser dependente e queria sentir-se igual às outras mulheres que trabalham. Mas o pedido não foi aceite.
“Ele diz que não tenho que me preocupar com trabalho, porque eu tenho comida na mesa e não preciso de mais nada”, declarou. Segundo Vitória, quando trabalhava e eram somente namorados não era dependente, mas que agora é. “Nos tempos de namoro até me dava forças para trabalhar e estudar”. Para encontrar uma solução de compromisso, o marido de Vitória construiu uma barraca, no quintal da casa, para vender produtos, que só funcionou apenas três meses. “O problema é que os homens são os que mais frequentavam a barraca, e ele já dizia que não me estou a comportar como uma mulher de família. Tive que deixar”.
Hoje, Vitória permanece em casa a cuidar dos filhos, dois da presente relação e um da anterior, e trata das tarefas domésticos. “Tenho inveja das mulheres que acordam cedo para ir trabalhar e ajudam nas despesas de casa e assim não passam dificuldades financeiras”, desabafou. “O homem acha que tem poder sobre a mulher, e nós infelizmente aceitamos isso”, disse Vitória a terminar.
“Já me senti presa dentro da minha própria casa”
Juliana, de 32 anos, residente no bairro Magoanine, vive maritalmente há três. O parceiro trabalha em turnos, e sempre que ele volta quer encontrá-la em casa. “Mesmo para encontros familiares, se ele estivesse a trabalhar, não podia ir, porque não me deixava ir sozinha, só na companhia dele”, lembra Juliana. “Sentia-me presa na minha própria casa, porque não tinha liberdade de sair, fazer as coisas que eu sempre desejei, mesmo à igreja só ia aos domingos”, disse. Para ultrapassar este dilema, Juliana quebrou o silêncio e optou pelo diálogo com o parceiro e familiares. “Demorou para ele entender e aceitar as minhas opções, mas graças a Deus ele depois entendeu que eu tinha que trabalhar para ajudar nas despesas de casa”.
Para Juliana, não só o facto de o marido não deixá-la sair ou trabalhar é que a deixava incomodada, mas também os olhares e comentários dos vizinhos. Embora nunca lhe dissessem directamente, ela percebia que falavam mal por causa do comportamento do marido. Hoje, Juliana tem uma barraca em Magoanine e disse estar a realizar um dos sonhos. “Já não dependo totalmente do meu marido, também sei pôr pão na mesa, e já não passo humilhações de ter de pedir até dinheiro de transporte para ir ao hospital”, disse. “A sociedade exige muito de nós, mulheres, e assim acaba por esquecer os nossos direitos”, conclui Juliana.
“Queria continuar a estudar”
Lídia, de 35 anos, residente no bairro Maxaquene A, vive maritalmente há cinco. Deixou de estudar quando se juntou ao parceiro. Frequentava o curso nocturno, devido à idade, na escola Noroeste 1. “Tive de aceitar o que o meu marido queria, porque eu já estou a viver com ele, se não manda- -me embora e eu fico sem lar”, afirma Lídia. Lídia confessou ainda que tem medo de ser rejeitada pela família caso contrarie as decisões do marido e de ser vista na sociedade como uma “qualquer”. Segundo a nossa fonte, o seu marido trabalha e não lhe falta nada em casa. “Talvez seja por isso que ele não me deixa estudar”, afirmou.
Mas Lídia não desiste e continua a tentar um diálogo com vista a convencer o marido a voltar à escola. Interrompeu os estudos na 9ª classe e o sonho de ser socióloga foi interrompido, mas ainda tem uma ponta de esperança de prosseguir com esse projecto. “Isso depende do meu marido”, disse. Lídia acredita que daqui a dois anos, quando a filha tiver três anos, há-de continuar a estudar. “Nunca é tarde. E a mulher também tem o direito de ter um futuro brilhante à sua escolha”. “O homem gosta de ver a mulher como sua dependente”, resumiu Lídia.
O que diz a lei em Moçambique
A desigualdade entre homens e mulheres na família persiste, apesar de Moçambique ter uma legislação que garante a igualdade. A Constituição da República de Moçambique, nos seus artigos 36 e 37, estabelece a igualdade. Define que todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos memos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, não devendo haver qualquer tipo de discriminação (artigo 35).
Define ainda o princípio da igualdade: “O homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural” (artigo 36). A Lei da Família também garante a igualdade de direitos entre o homem e a mulher na família. O artigo 98 refere que “qualquer dos cônjuges é livre de exercer profissão ou actividade remunerada”, e que “em nenhuma circunstância o direito ao trabalho pode ser condicionado ao consentimento conjugal”.
Entrevista ao sociólogo Eugénio Brás
“Infelizmente a nossa sociedade ainda é muito machista”
Que motivos estariam por detrás do comportamento do homem de impedir a mulher de trabalhar ou estudar?
São os valores que regem e governam as relações sociais de género nas famílias. Eles não estariam a agir contra aqueles valores, pelo contrário estão a corresponder àquilo que é a prática que eles aprenderam ou herdaram dos seus pais. Outro factor seria a distribuição de papéis. O espaço da mulher é a esfera doméstica, e o espaço do homem é a esfera pública; isso é um princípio milenar.
E esses valores ainda prevalecem?
Agora o que está a acontecer é que com as novas mudanças na estrutura social, há famílias que respondem a essa mudança de valores, por vezes é uma questão pragmática, porque os homens pensam que é melhor também a mulher participar nas despesas do lar e não porque ela tem direitos.
Como descreve a sociedade moçambicana?
As nossas sociedades são muito conservadoras. E só recentemente, nos últimos 20 e 30 anos, é que os valores sobre igualdade de género e empoderamento da mulher são aceites pelos órgãos de informação e pelas instituições do Estado, mais particularmente nos centros urbanos. E o nosso nível de urbanização é muito baixo. A grande maioria da população vive na zona rural, onde esses valores e princípios têm chegado com muita fragilidade, com menos impacto e com menor incidência. Mesmo nos centros urbanos, onde as pessoas mudam com maior facilidade, ainda há valores que estão muito enraizados na cultura, que não mudam tão facilmente.
A capacidade financeira seria o motivo da proibição?
Não necessariamente, mas se ele consegue proibir, é porque tem mecanismos ou bases para tal. Os valores enraizados têm um peso muito grande, e são estes que ainda guiam estes homens. E a mulher sacrifica muita coisa em prol da valorização dessa cultura. Muitos que proíbem não têm boas condições financeiras, mas porque ele acha que o lugar da mulher é a esfera doméstica, é lá onde ela vai ficar.
Porque o homem só impõe regras depois de lobolar e viver maritalmente com a mulher?
Porque a fase do namoro é apenas de conquista, e quando passam a viver juntos já há outras regras. Há o envolvimento da família e da sociedade, que têm expectativas em relação àquele casal. Do homem que impõe regras e da mulher que acata.
Considera a sociedade moçambicana machista?
Infelizmente ainda é. A posição da mulher ainda é de subalternidade, de desvantagem. Então a atitude dela vai ser a de sacrificar muitos desejos e sonhos em prol da relação. Ela vai ceder porque quer preservar a estabilidade da relação. Mesmo quando a mulher trabalha, e recebe mais que o marido, na esfera doméstica o homem é que exerce ainda o poder.
Dados do IDS 2011
Apesar de a igualdade estar garantida pela lei, as mulheres em Moçambique ainda não têm o mesmo poder na família. O IDS 2011 mostra que quase metade das mulheres casadas, com idades entre os 15 e os 49 anos, declara estar empregada. No caso dos homens casados, com as mesmas idades, são quase todos nesta situação (para efeitos do inquérito consideram-se empregados os que trabalharam em algum momento durante os 12 meses anteriores).
Quanto à tomada de decisões, entre as mulheres casadas na faixa etária dos 15-49 anos, 1 em cada 5 decidem sozinhas quanto aos seus próprios cuidados de saúde; cerca de 1 em cada 10 decidem sobre as grandes compras para o agregado.
No que respeita aos homens casados na mesma faixa etária, 1 em cada 2 tomam sozinhos decisões quanto à sua própria saúde; tomam sozinhos decisões quanto à realização de grandes compras para o agregado familiar, 4 em cada 10.
* WSLA é uma organização de direito das mulheres em Moçambique, ond eeste texto foi primeiro publicado.
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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