A (des)adequação formação/emprego em Cabo Verde
Neste artigo, Redy Wilson debate um tema que é crucial tanto para o desenvolvimento do país quanto para a questão profissional em Cabo Verde. Trata-se da problematização da formação como uma "aspirina mágica" em resolver os problemas de inserção no mercado de trabalho. No escopo desta discussão, o autor não poderia deixar de contextualizar a política do PAICV na liberalizaçaõ do ensino superior.
Cabo Verde foi idealizado por Cabral e edificado pelo PAIGC/PAICV sob o lema “as crianças são a razão da nossa revolução”, numa clara alusão à necessidade de se formar a nova geração com vista a ultrapassar os constrangimentos económicos, políticos e sociais que se avizinhavam. Findo o ciclo do partido único com a realização das primeiras eleições democráticas no ano de 1991 do século passado, o MPD, então partido vendedor das eleições, influenciado pelo Consenso de Washington, liberalizou o ensino através da concessão de licenças a escolas secundárias privadas e a criação de leis que impedissem os jovens de continuarem os estudos em instituições públicas caso ficassem retidos por duas vezes no mesmo ciclo ou chegassem ao terceiro ciclo com idade igual ou superior a 18 anos.
Volvidos largos anos, o PAICV, de volta ao Governo, liberaliza o ensino superior, democratiza ainda mais o ensino secundário e revitaliza o ensino profissional. Na campanha legislativa de Fevereiro último, analisando as plataformas e os manifestos eleitorais dos dois maiores partidos, PAICV e MPD, reparamos que a formação continua a ser considerado não só como um dos pilares do desenvolvimento económico e social das ilhas, como também um remédio milagroso para todos os males que vem assolando a nossa sociedade: pobreza, desemprego, exclusão, delinquência, etc. Ela nos é apresentada como algo mitificado tanto nos discursos dos actores políticos como no dos especialistas de ciências sociais.
No entanto, nos países centrais, desde o final dos anos de 1990, investigadores de ciências sociais, sociólogos ou economistas, debruçaram sobre a questão da formação a partir de uma abordagem crítica da concepção teórica e prática acima descrita, na tentativa de compreender por detrás da evidência enganadora dos discursos, qual a verdadeira questão dos debates sobre o sistema educativo.
Em Cabo Verde, a formação tem sido tomada como a arma perfeita para resolução dos problemas do emprego, inserção social e profissional, e da adaptação da mão-de-obra às mudanças técnico-económicas resultantes do processo da (re)globalização. Nos três debates eleitorais promovidos pela RCV, a formação foi tratada como a aspirina mágica capaz de resolver as contendas económicas e sociais do país. De facto, ela é hoje apresentada como um factor importante para a sobrevivência e o desenvolvimento da nossa sociedade.
Ao analisarmos o Documento de Estratégia de Crescimento e Redução da Pobreza II, notamos que a formação inicial, da escola primária à universidade, figura como a primeira prioridade do governo. Nos programas de reinserção social do Ministério da Juventude e do Ministério do Trabalho, Família e Solidariedade Social, verificamos que a formação é apresentada como a alavanca que permite o acesso ao emprego. Sendo assim, se complementarmos a análise com uma averiguação sistemática da imprensa cabo-verdiana nos últimos anos, concluiremos que a formação é apresentada como a nova questão social, na acepção que o socialismo utópico deu a este conceito no século XIX. É a forma encontrada para ocupar os jovens, para resocializá-los, uma vez que, a organização social contemporânea não tem sabido lidar com a população juvenil globalizada.
François Vatin, economista e sociólogo francês, considera que “o culto da formação na sociedade tecnocrática nega toda a dimensão social própria do conhecimento e do seu processo de aquisição, visto que, ela não é louvada pelas suas virtudes exclusivas de desenvolvimento dos indivíduos e dos colectivos sociais, mas pelo facto de ser, vir a ser, a chave do emprego” . Transportando a observação de Vatin para o contexto cabo-verdiano, somos a afirmar que existe actualmente no espaço social cabo-verdiano dois problemas referentes à adequação formação/emprego.
Em primeiro lugar, convém termos em conta que vivemos numa época em que o trabalho encontra-se em crise, manifestada pela crise do emprego e da persistência do desemprego de longa duração, fruto da flexibilidade industrial, marca das sociedades pós-industriais. Um país vulnerável e estruturalmente dependente das ajudas externas, quer através das remessas dos emigrantes quer pela sua dependência da ajuda pública ao desenvolvimento, como a nossa, com um tecido industrial ignóbil e uma grande parte do sector terciário, nomeadamente o sector do turismo tido como o motor do desenvolvimento nas mãos de investidores estrangeiros, torna-se forçoso questionarmos sobre a premissa adequação formação/emprego. Se tivermos em consideração os últimos dados do INE em relação ao tamanho da população juvenil, o número de jovens actualmente em formação, profissional e superior, no país e no estrangeiro, e cruzarmos com a capacidade e a oportunidade laboral existente nas ilhas, facilmente concluímos que a maioria dessa facção populacional irá para o desemprego.
Um outro problema que poderemos levantar em relação à adequação formação/emprego deve-se ao facto de, na tentativa em se atingir as metas agendadas internacionalmente, os políticos dos Estados-Nação periféricos, como é o caso de Cabo Verde, preocupam-se muito mais com a quantidade de jovens formados, relegando a qualidade dos mesmos para segundo plano.
Quanto a esta questão, começa-se a ouvir vozes dissonantes em relação ao caminho por nós seguido, sobretudo, com a democratização e liberalização do ensino superior, face a ausência de fiscalização governamental. Para alguns, ainda é cedo afirmarmos as consequências do empilhamento das universidades no país, se bem que perspectivam um futuro não muito cor-de-rosa quando a maioria dos actuais formandos começarem a inundar o mercado de trabalho. Mais do que a excessiva oferta universitária num país com a nossa dimensão, a fraca qualidade do sistema do ensino reflecte-se, igualmente, na abertura de cursos sem o devido acautelamento da sua sustentabilidade, viabilidade e mais-valia individual e colectiva, sustentada por uma cultura de docência baseada em expedientes, acumulação de status e de lucros. É de realçar, que para muitos, devido à fraca qualidade do ensino secundário, os estudantes cabo-verdianos alcançam as universidades, nacionais e estrangeiras, com um enorme handicap, muitas vezes impossíveis de recuperar.
Esta desadequação já começa a manifestar-se na camada juvenil formada, visto que, muitos jovens recém-formados se encontrem numa situação sentimental que varia entre aspirações e frustrações. A aspiração em ter uma mobilidade ascendente através do capital cultural adquirido via sistema educativo e a frustração devido à dificuldade de acesso a um mercado de trabalho cada vez mais segmentado, controlado, muitas vezes, por uma rede de compadrio e de militância política. Por outras palavras, poder-se-á dizer que esta desadequação deve-se ao efeito da dessincronização . Andamos a dois ritmos de velocidade: o do sonho de termos uma sociedade tecnocrática ultra-moderna eficiente e a realidade de vivemos numa sociedade frágil em que as instituições mal funcionam.
*Redy Wilson é investigador em Cabo Verde
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