Guiné Bissau: Silêncio da CPLP é vergonhoso

O facto de a sua candidatura ter sido rejeitada não o afecta, uma vez que tem de continuar a recuperação em Portugal…

Só me afectou moralmente. Excluem a minha candidatura com um argumento muito duvidoso, de que eu não terei suspendido o exercício das funções de Presidente do Tribunal de Contas. É uma brincadeira, tanto podia fazer a suspensão antes como depois.

De onde acha que nasce essa resistência à sua candidatura?

De políticas de chauvinismo e de intolerância que começam a despontar na Guiné, das quais me apercebi quando fui primeiro-ministro. Estava tudo a correr tão bem que tiveram medo que eu me candidatasse a Presidente da República. Toca, dentro da Assembleia Nacional Popular, de criar um movimento no sentido do agravamento das condições de elegibilidade ao cargo de Presidente da República e de acesso aos órgãos de soberania. Que gente como eu, mestiça de sangue, não poderia ter acesso na Guiné a cargos como chefe de Estado Maior das Forças Armadas, Presidente da República, primeiro-ministro…

Uma lei racista.

Uma lei racista aprovada por todos partidos com assento parlamentar e eu senti-me ofendido. Foi em 1999. Fui ter com o Presidente, simbolicamente levei as chaves do meu gabinete, e disse-lhe: ‘Senhor Presidente, se o senhor promulgar essa lei que acabou de ser aprovada eu entrego-lhe estas chaves’. Explicou que a lei não era para esta legislatura, mas eu disse-lhe que era uma questão de honra e que se não servia para o mandato seguinte já não servia naquele momento.

E a lei foi promulgada?

Não, porque sabiam que caindo eu caía o sistema político todo. Eu era a única autoridade legítima face à comunidade internacional, já que a minha nomeação tinha sido feita por um Presidente democraticamente eleito. Malam Bacai Sanhá pode ser preguiçoso, cobarde, não defende ninguém mas quer ser o Presidente de todos os guineenses. Nunca se ouviu aquele homem dizer que os vencimentos estão atrasados seis meses ou que os camponeses estão a ser obrigados a vencer os produtos a preços tão baixos em comparação com a comunidade internacional. E nunca se ouvirá, mas ele quer ser Presidente. Para todo o mundo ele é guineense, porque é mais escuro do que eu. Eu luto pelo meu povo desde os 16 anos de idade, percorri estradas que ainda não tinham sido desminadas porque era necessário. Mas esses senhores que se dizem dignos e intelectuais, quando fazem campanhas andam a dizer, ‘Lá está o Fadul: ele é branco, tenham cuidado porque ele quer trazer os brancos de volta para tornarem a dominar’. Isso é criminoso.

Há condições para que se realizem eleições democráticas?

Eu sou um legalista e quero sempre que a lei seja aplicada. Mas ninguém ignora que já as legislativas foram viciadas pelo narcotráfico e pela corrupção. E agora o Presidente não poderia nomear cargos políticos. Esta chefia ilegítima das Forças Armadas e o primeiro-ministro congeminaram uma força política e militar de dominação do país. Que mata e espanca, que faz tudo o necessário para que não haja uma voz discordante na sociedade.

Como acreditar nessas eleições?

Por isso eu continuo a pedir à comunidade internacional uma atenção pela Guiné-Bissau, que é membro das Nações Unidas.

A solução já só pode vir de fora?

Só pode vir de fora. Não há mecanismos internos. A opressão só será afastada pela força. É preferível que seja uma força exterior, com um mandato das Nações Unidas, legitimada pela ordem civilizada, força contra a qual eles não ousarão dar um tiro sequer, e não sujeitar a Guiné-Bissau a nova sangria.

Os políticos estão reféns da influência dos militares e dos narcotraficantes?

Não diria tanto que são reféns, mas também é verdade. Preferia dizer conluiados. E não só o PAIGC, como muitos partidos da oposição. São oposição quando estão reunidos, mas depois saem de lá e vão entregar relatórios ao partido do poder e à direcção das Forças Armadas, porque com isso recebem benefícios materiais e segurança.

E pensa que se fosse eleito PR teria poder para acabar com essas influências?

Pedia imediatamente aos EUA para que estabelecessem uma base militar na Guiné-Bissau, pois sei que eles necessitam urgentemente de uma naquela região do Atlântico. E que entre EUA, Portugal, Brasil e Angola se estabelecesse uma força militar de pacificação da Guiné-Bissau. É a única forma de os órgãos do Estado voltarem a ter soberania e tenham capacidade para combater o fenómeno do narcotráfico. Chamava-se à Guiné-Bissau o apoio técnico, político, diplomático e financeiro – porque a base seria arrendada e só esse rendimento constituiria vários orçamentos gerais do Estado – e o Governo estaria em condições de elevar o valor dos vencimentos e das pensões, não teria tanta preocupação com o excesso de efectivos, podendo até enviá-los para outras áreas de desenvolvimento do país, como o turismo. E chegando essa força multinacional, já seria possível que o Ministério Público concluísse o trabalho. Há duas semanas, o PGR declarou-se incapaz de concluir os inquéritos, por falta de meios. Quem lhe devia dar os meios? Quem está indiciado nos crimes que ele está a investigar. O Governo, pela pessoa do seu chefe, é um dos indiciados; assistimos à vergonha dos militares terem dito que já sabiam quem eram os responsáveis pelos assassínios, e entregaram seis de 150 páginas. O MP reclamou e Zamora Induta disse que o inquérito era dos militares e que se o MP queria um que o fizesse.

Já teve alguma resposta ao apelo que fez à CPLP?

A CPLP está num silêncio que considero vergonhoso. As comunidades devem ser feitas com base em valores políticos, mas também em valores de honra. E não gosto de conceber esta ideia de comunidade lusófona em que a dignidade não conta nos Estados-membros. Na Commonwealth quando um Estado ofende os direitos do seu povo é imediatamente suspenso até que o povo desse país seja capaz de renovar as suas estruturas com novas pessoas. Na lusofonia isso não está previsto, nem se sente coragem para tanto. Porque há complexos do colonizador e de colonizado. Em 1999, propus a António Guterres a assinatura de um acordo de defesa mútua. Ficou alarmado, dizendo que não sabia se podia por Portugal ser membro da União Europeia. Respondi-lhe que a França também o é e tem acordos com todas as suas ex-colónias. O ideal seria um pacto geral de defesa mútua dentro da CPLP e nesse dia acabavam-se os problemas de segurança internos desses países.

Quais são as razões do silêncio da CPLP após o assassínio de um chefe de Estado?

Eu acho que não passa desses complexos. Porque Portugal já defendeu que se houver decisão da ONU está em condições de fornecer tropas. O Brasil fez o mesmo. Cabo Verde também. Afinal, se até os países pequenos estão de acordo e se comprometem, porque é que a ideia não avança? Fica-se a empurrar a batata quente para a ONU. As Nações Unidas devem ser sensibilizadas pela CPLP e pela Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental. Não se pode criar um antecedente de impunidade, que permite o abate simples e puro de um chefe de Estado e do chefe de Estado Maior do país.

Mantém a tese de terem sido o actual chefe de Estado Maior e actual primeiro-ministro que fizeram este golpe?

Claro, e esta tese está a avolumar-se na consciência de muita gente. Por exemplo, quando o MP exige que lhe sejam entregues as 144 páginas em falta no inquérito dos militares. É claro que há indiciação do chefe do Governo e dos militares, está evidente.

O relatório incrimina Zamora Induta e Carlos Gomes Júnior?

Sim, com certeza. Toda a sociedade guineense tem agora essa noção clara. Senão por que ocultariam essas páginas?

Significa que são os militares a incriminar o seu líder…

Porque o chefe supremo não está dentro da lógica global das Forças Armadas. Zamora Induta chega lá por que processos? Se estudarmos o seu percurso chegamos à conclusão que é um corpo estranho nas Forças Armadas. Repare: quem anunciou a morte de Ansumane Mané? Zamora Induta. Quem anunciou a morte de Veríssimo Correia Seabra? E quando ele anuncia a morte de Mané é como porta-voz das Forças Armadas. Mas quando anuncia a morte de Veríssimo Correia Seabra, chefe de Estado Maior das Forças Armadas, ele está ao serviço de quem? Não das Forças Armadas, porque não foram estas que mataram Correia Seabra. Foram criminosos dentro do exército. Quem anuncia depois a morte de Tagmé Waié? Zamora novamente. Não é demais? E a seguir começa por se declarar coordenador da chefia das Forças Armadas, ele que nem era chefe de Estado Maior de ramo, consegue saltar aquele paredão hierárquico, que nas Forças Armadas é de betão, e assume-se como coordenador. E em menos de uma semana autoproclama-se Presidente das chefias militares. Sabe-se que Carlos Gomes Júnior ofereceu-lhe um carro todo-o-terreno antes da morte do Presidente. E sabe-se que lhe ofereceu 300 milhões de francos BCEAO (455 mil euros).

Pensa que podem morrer mais pessoas até às eleições?

Sim. Toda a acção produz forçosamente uma reacção. Ora, vai haver sempre gente a contar espingardas e a congeminar uma alteração da situação. Ou gente honesta a querer de facto reconduzir o Estado ao direito. Quem vai cair proximamente, não sei fazer a escala, mas sei que Zamora estará nessa escala de quem vai cair. Pode contar que tem lá lugar cativo.

Bacilo Dabó assustava?

Assustava, sim. Sabia segredos de segurança do Estado. Há quem diga que o Presidente Nino tinha um circuito interno de televisão em casa e que Baciro saberia disso e que foi lá buscar as gravações para as entregar à viúva. Agora o MP quer ouvir a viúva no inquérito, porque ela assistiu à morte do marido.

Voltando às eleições, acha que este clima está a preparar terreno para a eleição do candidato do PAIGC?

Claro, sem sombra de dúvida. Foi o único que declarou publicamente que manteria as actuais chefias militares - que são inconstitucionais - porque elas foram estabelecidas por consenso. Ora não sei se ele terá assistido às reuniões das Forças Armadas, mas não sei qual é o consenso num meio disciplinado e hierarquizado quando alguém salta lá do fundo do poço e se torna chefe de toda a gente. Mas ele diz expressamente que vai mantê-lo.

Se Bacam Sanhá ganhar…

Se isso acontecer vai extremar a radicalização que está a acontecer na sociedade guineense. Se há um grupo que cria artificialmente mecanismos de acesso ao poder não legítimos, há sempre outros que ficarão ofendidos, porque pensam que poderiam lá chegar legitimamente. Quem lhes garante que Zamora tem condições para ser o chefe maior das Forças Armadas?

Teme pela sua vida quando voltar à Guiné-Bissau?

Tenho de sentir medo. Mas ao mesmo tempo a educação que recebi também conta. Se eu tivesse cultura de ladrão, desde que me dessem uma soma gratificante era capaz de ficar calado, como outros estão calados até sabendo mais do que eu da situação. Gostaria de deixar isto claro: não foram as Forças Armadas da Guiné-Bissau que me maltrataram, foi um esquadrão da morte às ordens de Zamora Induta.

*Entrevista publicada originalmente em

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