No olho do furacão
Nos dias 1 e 2 de Setembro de 2010, as cidades de Maputo, capital de Moçambique, e a sua vizinha Matola, vivenciaram um fenômeno raramente visto desde a independência do país em 1975: violentas manifestações de revolta popular em protesto contra o governo. Alguns dias antes, circulavam nas duas cidades mensagens de sms de origem desconhecida convocando o “povo” a protestar contra o aumento do custo de vida – através dos aumentos nos preços da água, dos combustíveis, energia elétrica, pão (farinha de trigo) – recentemente anunciado pelo governo, então a entrar em vigor.
Nos dias 1 e 2 de Setembro de 2010, as cidades de Maputo, capital de Moçambique, e a sua vizinha Matola, vivenciaram um fenômeno raramente visto desde a independência do país em 1975: violentas manifestações de revolta popular em protesto contra o governo. Alguns dias antes, circulavam nas duas cidades mensagens de sms de origem desconhecida convocando o “povo” a protestar contra o aumento do custo de vida – através dos aumentos nos preços da água, dos combustíveis, energia elétrica, pão (farinha de trigo) – recentemente anunciado pelo governo, então a entrar em vigor.
Logo na manhã do primeiro dia, a violência explodiu nos bairros da periferia da cidade. De um lado, os manifestantes (jovens em sua maioria) bloquearam as principais vias de acesso queimando pneus na estrada e protagonizaram diversos atos de violência: saques, incêndios, vandalização de carros e edifícios; ao que a polícia respondeu com extrema violência, evidenciando o seu despreparo para situações desta natureza. 13 mortos e 443 feridos foi o saldo total destes acontecimentos que acabaram por se estender até o dia seguinte. Por via da televisão e da internet – com os seus blogs, twitters e redes sociais – as imagens da revolta popular em Maputo rapidamente ganharam o mundo, expondo as fragilidades do país e a sua vulnerabilidade em termos geo-políticos. Algo particularmente problemático para um país que depende tanto de investimentos externos e até mesmo de “doações” vindas da “comunidade internacional”.
Em dois dias, as cidades de Maputo e da Matola viveram em verdadeiro estado de sítio (não decretado pelo governo) que, para além dos prejuízos materiais, financeiros e patrimoniais, produziu também danos morais aos moçambicanos como um todo, no sentido de uma inquietação geral a respeito do nosso futuro como país. Uma série de questionamentos veio à tona por parte dos mais diversos setores da sociedade, na tentativa de esclarecer o fenômeno que além da violência e da anarquia que se instaurou, impressionou a todos pela raridade[1]... e pelo temor de que venha a se repetir. O governo se apressou em dizer à sociedade que a alta dos preços se devia à crise econômica mundial e por sua vez, o “povo” tratou de culpar os governantes pela sua suposta incompetência e arrogância na condução da política econômica.
Neste artigo não nos interessa tanto a cadeia de eventos macro-econômicos que levaram a esta situação, mas sim compreendê-la como um sinal de alerta máximo em relação às deficiências do atual sistema sócio-político moçambicano, que se encontra em um momento particularmente tenso. Para isso, será necessário contextualizar o percurso histórico recente e nele, localizar os fundamentos e os principais agentes envolvidos na sua constituição.
Moçambique e o seu lugar no mundo
Ex-colônia portuguesa, Moçambique se tornou independente em 1975 por via de uma luta armada com proposta política e cultural: libertar o país e edificar uma nação inteiramente nova, calcada em valores revolucionários capazes de romper com o legado colonial, assim como com os considerados “vícios” morais das sociedades “tradicionais”. Muito mais em função das circunstâncias geo-políticas de então do que por demandas sociais internas, o país alinhou-se ao bloco soviético no contexto da Guerra Fria e instaurou um regime socialista, liderado pela FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique. A partir da década de 1960, esta organização fundiu diversos outros movimentos nacionalistas engajados na luta contra o colonialismo, tornando-se, imediatamente após a independência, o partido único governante de Moçambique. Desde então, o partido adquiriu uma tal hegemonia a ponto de se ver em praticamente todas as esferas da sociedade, como manda o figurino socialista.
Ainda em conformidade com o contexto, o país sofreu pesadas conseqüências devidas ao seu alinhamento político contrário aos interesses capitalistas globais; mais concretamente, a África do Sul dos tempos do apartheid e a então Rodésia do Sul (atual Zimbábwe) promoveram uma série de agressões ao país com o intuito de desestabilizar o regime[2]. Para tanto, estes países criaram e financiaram a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), uma milícia contra-revolucionária formada por dissidentes do partido no poder e que recrutava os seus homens justamente em áreas de menor influência da Frelimo, principalmente as regiões centro e norte de Moçambique. Tendo como principais táticas a sabotagem das infra-estruturas e os ataques a populações vulneráveis, esta força paramilitar foi o principal instrumento de combate ao regime da Frelimo, do qual resultou numa guerra que em 16 anos, deixando um saldo de cerca de 1 milhão de mortos, além de agravar o empobrecimento do país.
Desde a sua gênese, a Renamo cumpriu uma agenda política externa, absolutamente alheia aos interesses nacionais; jamais possuiu projeto político claro, apenas apoiou-se numa reivindicação de democracia puramente retórica, reproduzindo o discurso do bloco capitalista mundial, de quem era um mero instrumento, em última instância. Entretanto, o fim da Guerra Fria acabou por esvaziar de sentido a “guerra civil”[3] moçambicana, uma vez que a derrota mundial do socialismo desestruturou a rede de solidariedade na qual o país se apoiava para fazer face às agressões externas e mesmo para edificar a nação. Na realidade, já desde 1986, devido à sua condição de extrema pobreza, Moçambique já havia se credenciado a instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para se tornar “beneficiário” das suas políticas de reajustamento estrutural. E efetivamente, em 1992, sob os auspícios da “comunidade internacional” (leia-se países ricos), assina-se em Roma o Acordo Geral de Paz entre a Frelimo e a Renamo, no qual as partes dão por encerrado o conflito, sob a condição se constituírem como partidos políticos dentro de um sistema democrático.
Em linhas gerais, a instauração de um sistema político democrático em Moçambique foi uma imposição da dita “comunidade internacional”, como um requisito para que o país continuasse a participar dos programas de auxílio do Banco Mundial e o FMI, sob o pretexto de ajudar o país a reestruturar a sua economia[4] e se reenquadrar na nova conjuntura global. Aqui, estamos diante de um fenômeno que atingiu também outros países da África, da Ásia e da América Latina, mas vejamos daí duas particularidades importantes para a montagem do atual sistema político moçambicano.
Como podemos ver, neste caso, a instauração de uma democracia não se deu como resultado de um processo de reivindicações de demandas surgidas no seio da sociedade moçambicana. E além disso, a transformação da Renamo de milícia contra-revolucionária em partido político deu-se igualmente de forma artificial, como resultado de pressões externas. Assim, desde as primeiras eleições em 1994[5], a democracia moçambicana tem funcionado de forma distorcida, tendo de um lado, um partido extremamente hegemônico, com controle sobre praticamente toda a máquina estatal, acumulado desde a independência em 1975; e de outro lado, um partido de oposição sem projeto político, ocupado unicamente em obstruir o máximo possível as ações do governo. Ao longo do tempo, o vácuo de uma oposição construtiva deixado pela Renamo, acabou por enfraquecê-la, aumentando-se progressivamente os já amplos poderes da Frelimo. Nas últimas eleições, de 2009, o partido conseguiu mais um vitória estrondosa, alcançando ampla maioria no Parlamento, de forma a obter hegemonia quase igual ao período pós-independência... inclusive, com possibilidade de alterar a Constituição[6]. A diferença é que atualmente tal hegemonia se dá num contexto “democrático”, expondo-se ao mesmo tempo as distorções que lhe são peculiares.
Bomba-relógio
De um certo ponto de vista, as manifestações de setembro em Moçambique podem ser interpretadas como a detonação de uma bomba-relógio ativada em 1992. Se por um lado, o Acordo Geral de Paz pôs fim à guerra que devastou o país por 16 anos, por outro lado, deu origem a uma democracia artificial que mais cedo ou mais tarde, iria expor os seus limites; e estes vieram à tona justamente em um momento de aguda crise econômica mundial. Mais uma vez, nos interessa aqui a dimensão cultural da política, acreditando que à luz dela, possamos descortinar as características – mais do que as possíveis causas - de situações como esta. À artificialidade da democracia moçambicana enquanto fenômeno político-institucional corresponde uma noção de cidadania (enquanto fenômeno cultural) pouco desenvolvida, tanto por parte dos governantes quanto do “povo”, representado pelos atos dos manifestantes.
As manifestações tiveram uma particularidade bastante significativa e que deixa toda uma série de questões no ar: elas não tiveram um “rosto”, ou seja, ninguém – seja individual ou coletivamente - reclamou a sua autoria; no senso comum, atribuiu-se ao “povo”, que revoltado, resolveu se insurgir contra o governo. Em nenhum momento, se questionou a origem dos sms e muito menos, surgiu alguma autoridade da justiça se dispondo publicamente a investigar ou identificar os responsáveis (mesmo que não o faça). Independente da justeza ou não da(s) causa (s) dos manifestantes, chamou a atenção a facilidade com que a segurança da capital do país foi posta em cheque... por uma suposta iniciativa de manifestantes “sem rosto”.
Do lado do governo, para além da reação violenta e despreparada da polícia[7], a seqüência de pronunciamentos dirigidos à sociedade foi considerada insensível e arrogante pela opinião pública. Porém, mais grave do que isso, os governantes não transmitem à sociedade a sensação de haver uma ordem institucional a ser respeitada. Nesse sentido, há uma fato emblemático: num dos primeiros pronunciamentos oficiais, foi designado o porta-voz da Frelimo para se dirigir à sociedade, apelando a todos que trabalhem mais para “combater a pobreza absoluta” (o seu slogan eleitoral). É como se o próprio governo não soubesse fazer a distinção entre si e o partido, como se não tivesse ainda se apercebido que vivemos em uma “democracia”. Ironias à parte, temos aqui um péssimo exemplo em termos de cidadania vindo de quem deveria fazer justamente o contrário.
O evento em si e dos seus desdobramentos nos dizem muito sobre a relação que se estabeleceu entre o Estado e a sociedade ao longo da História e que agora se encontra em crise. É possível dizer que desde o seu surgimento como nação soberana, houve - ou “se impôs” - uma verdadeira simbiose entre a Frelimo e o “povo”, dada sobretudo pela causa nobre da independência e da luta armada que a precedeu. Apoiada sobre o arcabouço ideológico do regime socialista, esta força política obteve legitimidade em se colocar como “guia e dirigente do Povo moçambicano”. Entretanto, a partir de 1992, esse estado de coisas permitiu e reforçou um alto grau de promiscuidade entre partido e governo, caracterizado por um poder tentacular da Frelimo na sociedade[8], ainda que sob um novo marco institucional.
Vários outros fatos merecedores de análise mais profunda foram desencadeados pelas manifestações de 1 e 2 de setembro, mas estes dois são já suficientes para ilustrar aspectos importantes da política moçambicana. Do lado da sociedade civil, evidencia-se a ausência de instituições verdadeiramente representativas dos seus interesses para dialogar de forma legítima e organizada com o governo. E do lado deste, falta uma percepção mais aguçada da realidade sócio-política contemporânea, que lhe permita equacionar melhor situações desta natureza. E claro, compreender que passa por uma grave crise de representatividade, uma vez que não estimula a criação de mecanismos que retro-alimentem esse diálogo desejável.
Basicamente, o país passa por problemas estruturais cujas soluções ultrapassam qualquer capacidade dos governantes e estes se vêem sem condições de dar respostas satisfatórias à sociedade, a não ser com medidas paliativas[9]. Mais dos que as questões imediatas no âmbito econômico, o desafio que se coloca aos moçambicanos diz respeito à forma como encaminhamos os nossos problemas: queremos simplesmente a diminuição do custo de vida um sistema verdadeiramente democrático? Obviamente, esta é uma forma simplista de colocar a questão, mas o fato é abriu-se um precedente que terá um peso decisivo nos destinos do país daqui para frente... que diga-se, não são nada otimistas.
*Marílio Wane é sociólogo, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientas daUniversidade Federal da Bahia.
*Por favor envie comentários para [email][email protected] ou comente on-line em http://www.pambazuka.org
[1] No dia 5 de fevereiro de 2008, protestos semelhantes aconteceram – contra a alta dos preços dos combustíveis – porém, em muito menor escala.
[2] Moçambique goza de uma posição estratégica nesta região do continente e nesse sentido, a existência de um regime socialista comprometia interesses das duas principais potências econômicas regionais: a África do Sul e a então Rodésia do Sul.
[3] Assim erroneamente chamada, uma vez que estavam em jogo interesses alienígenas, operando dentro do país na lógica da Guerra Fria.
[4] Que, a longo prazo, tem se mostrado como fatores adicionais de empobrecimento, dependência econômica e de ingerência nas políticas internas.
[5] Desde então, tem se realizados eleições regularmente, com mandatos presidências de 5 anos, e a Frelimo tem saído vitoriosa, até a última, realizada em 2009.
[6] Atualmente, há um debate público sobre esta matéria.
[7] O ministro do Interior afirmou ter autorizado apenas o uso de balas de borracha, mas cerca de uma dezena de pessoas foi fatalmente vitimada por balas letais.
[8] Sob a forma de células do partido na função pública; sindicalismo controlado pelo Estado; idem para organizações de jovens e mulheres. Além de uma extrema concentração de poder político e econômico entre os líderes do partido.
[9] Uma semana depois dos conflitos, o governo reduziu alguns preços e anunciou subsídios para conter outros, porém acredita-se que tais medidas serão sucedidas por outras mais drásticas a curto prazo.