O rosto sombrio da branquitude médica brasileira: do elitismo ao racismo xenófobo

A história do pensamento social e político nos países da América Latina, especialmente Brasil, Argentina, Uruguai e Colômbia, revela que, desde fins do século 19 até as primeiras décadas do século 20, segmentos significativos das elites médicas participaram ativamente da elaboração e difusão de campanhas racistas, difamatórias e de cunho xenófobo contra imigrantes asiáticos, árabes, negros e indígenas. Medidas de higienização e eugenia foram sistematicamente praticadas contra estes grupos a fim de limitar e controlar sua presença no território nacional.

A história do pensamento social e político nos países da América Latina, especialmente Brasil, Argentina, Uruguai e Colômbia, revela que, desde fins do século 19 até as primeiras décadas do século 20, segmentos significativos das elites médicas participaram ativamente da elaboração e difusão de campanhas racistas, difamatórias e de cunho xenófobo contra imigrantes asiáticos, árabes, negros e indígenas. Medidas de higienização e eugenia foram sistematicamente praticadas contra estes grupos a fim de limitar e controlar sua presença no território nacional. No ano de 1904, em publicação da Academia de Medicina do Rio de Janeiro, “O Brazil Médico”, fica evidente a pregação racista:

"Claro está que um branco imbecil será inferior a um preto inteligente. Não é, porém, com excepções que se argumenta. Quando nos referimos a uma raça, não individuallisamos typos dela. E assim procedendo vemos que a casta negra é o atraso; a branca o progresso, a evolução... A demencia é a forma que mais avulta os negros. Pode-se dizer que tornam-se elles dementes com muito mais freqüência, por sua constituição, que os brancos...”. (Citado em O espetáculo das raças, de Lilia Schwarcz. p. 223)

Tais práticas estão intrinsecamente ligadas as "políticas raciais racistas". Estas pressupunham a imigração de trabalhadores brancos europeus – preferencialmente “nórdicos” como alemães suíços e ingleses considerados “superiores” quando comparados aos “latinos”, espanhóis, gregos, portugueses e italianos do sul. Do mesmo modo, contavam com forte patrocínio estatal, além de capital privado de fazendeiros a fim de embranquecer o estoque populacional brasileiro, composto de "negros, indígenas e mestiços".
Além do pensamento eugenista das elites médicas, o pensamento racial brasileiro contribuía com a visão racista não só no Brasil, mas como em diversas outras partes do mundo da época. Um exemplo disto foi exposto pelo historiador inglês Henry Thomas Buck (1821-1862). Como todos os teóricos racistas de seu tempo, Buck tinha uma visão pessimista do país, ainda que nunca tenha estado por aqui. Elogiava sua beleza natural, mas desprezava seus habitantes.
“Em nenhum outro lugar há tão penoso contraste entre o grandioso do mundo exterior e a pequenez do interno. (...) porque mesmo no presente com tantos aperfeiçoamentos originários da Europa, não há sinais de progresso real...”. (Thomas Buck, in: SKIDMORE, T, Preto no Branco).

Neste contexto histórico, observamos que tais práticas não foram muito diferentes na Europa, principalmente na Alemanha e Áustria dos anos de 1930 e 1940. A ideologia nazista contou com um expressivo corpo de profissionais da área médica, como cirurgiões, biólogos, sanitaristas, patologistas e psicólogos.

Estas elites médicas foram fundamentais para justificar e disseminar no imaginário da classe trabalhadora alemã e austríaca do período que judeus, ciganos, loucos, homossexuais, portadores de necessidades especiais, etc, constituíam "raças" ou "seres inferiores e degenerados" e que por isso precisavam ser eliminados fisicamente, preferencialmente por meio de métodos legitimados “cientificamente", como as câmaras de gás. Era comum a associação animalesca dos judeus com infestação de ratos e outras pragas, corroborando assim a política de extermínio do governo hitlerista. Comparativamente podemos citar o caso dos radicais hutus, em Ruanda e Burundi, ao associar a minoria étnica dos tutsis com baratas (cockroachs), abrindo caminho para uma escalada genocida que com o uso de facões e machados assassinaram milhares de pessoas, inclusive hutus moderados, na África Central na metade dos anos de 1990.

No caso brasileiro, infelizmente o transcorrer do tempo parece não ter produzido tantas modificações no imaginário social das elites que aqui se perpetuam. As escolas particulares e públicas mais bem estruturadas e, consequentemente, espaços por excelência de pessoas oriundas da classe média e média alta - praticamente toda branca - continuam a monopolizar o acesso para o ensino superior, especialmente cursos considerados de “alto prestígio social” como medicina, direito e as engenharias. Somente na última década é que esta configuração começa a ser lentamente modificada a partir da introdução de políticas de ação afirmativa nas universidades de todo o país, particularmente as cotas raciais e sociais.

Ainda assim é absurdamente desproporcional a disparidade racial presente no número de médicos(as) formados em nossos campi. Dai a associação feita tão facilmente entre um branco(a) de jaleco branco e um médico(a) branco, como na fala jocosa surgida nas redes sociais. Médicos pertencentes a outros grupos raciais, especialmente negros, são vistos com estranheza, desdém e preconceito, já que destoariam da representação hegemônica da brancura que o imaginário racista associa aos médicos. Os médicos cubanos negros e, por tabela, todos os outros médicos negros de qualquer lugar do mundo não caberiam no enquadramento racialmente limitado e, claro, racista, das elites médicas brasileiras. Não nos faltam exemplos para corroborar esta percepção. Semanas atrás, Micheline Borges, jornalista do Rio Grande do Norte, publicou em uma rede social seu espanto diante das médicas cubanas que, segundo a jornalista, assemelhavam-se a empregadas domésticas. Há que se ressaltar ainda que, diante deste raciocínio, seu espanto evidenciou-se, também, diante da iminência da mistura destes universos/cores/raças/classes. Mistura esta que também era vista com ressalvas no contexto de 1904. Neste caso, tem-se o agravante de uma mistura de racismo e sexismo ao se referir as médicas cubanas. Ser mulher, negra e médica é visto como excessivo em um imaginário em que tais identidades sempre foram atribuídas a condição de subalternidade.
Além do recorte de classe, raça e gênero estruturante na formação dos médicos de todas as especialidades, há que se levar em consideração que o currículo desses profissionais raramente abarca assuntos como direitos humanos, desigualdades sociais, racismo, feminismo, etc, sob as lentes das ciências humanas e sociais. O resultado é que muitos médicos simplesmente aprenderam a ter repúdio, nojo e indiferença do povo. Ou minimamente não conseguem desnaturalizar esta repulsa construída e ressignificada ao longo do tempo e práticas sociais no Brasil.

Isso explica em parte a reação racista, xenófoba e esquizofrênica de médicos e estudantes de medicina em Fortaleza e outras cidades do nordeste com a chegada de médicos cubanos, dentre estes muitos negros. Como todos sabem os médicos brasileiros não querem atuar nas pequenas cidades do interior do país. Não suportam a idéia de viver longe dos grandes centros urbanos, assistindo e atendendo populações pobres. É verdade que os hospitais e postos de saúde em boa parte das pequenas cidades são verdadeiros fiascos. É também verdade que falta a criação de uma carreira de Estado para médicos, mas não apenas, pois também são necessários outros profissionais da área de saúde. Falta de tudo. No entanto, mesmo se estivessem suficientemente equipados – e existem casos de estruturas hospitalares em boas condições – estes médicos dificilmente não iriam. E não iriam nem mesmo para ganhar mais que 15 mil reais ao mês!

A recusa com a vinda de médicos cubanos associando-os a "escravos" e "empregadas domésticas" é revelador do imaginário racista e classista da "branquitude médica" brasileira e da imprensa burguesa prima-irmã da primeira. Como já mostrado em inúmeras reportagens, médicos assinam seus pontos em hospitais públicos e logo depois vão embora, em um completo descompromisso/descaso com a saúde da população. Doentes agonizantes, humilhados, esquecidos, espalhados nos corredores e salas de hospitais e postos públicos de saúde.

Ninguém pode garantir que o Programa "Mais Médicos" do governo federal atenderá com sucesso todas as expectativas em torno dele. Existem muitas controvérsias em termos da eficácia do programa e certamente não basta somente contratar médicos estrangeiros para resolver um problema ao mesmo tempo estrutural e conjuntural. É preciso que haja uma total reformulação nas políticas públicas de saúde em toda a sua extensão, o que significa o triplo de investimentos na área, bem como requalificar os programas de formação de novos médicos. O que já se pode garantir é que este programa está mexendo com os privilégios simbólico, social, corporativo e racial de um segmento que se beneficiou do capital econômico tomado à força dos grupos que agora recusam atender e tratar.

Devemos estimular, portanto, o debate sobre a saúde pública, um debate mais qualificado do que este que se apresenta, dividido em velhos maniqueísmos. Um debate no qual as vozes daqueles que utilizam os serviços do Sistema Único de Saúde tenha espaço, visibilidade e agência. Um debate que não reduza e desconsidere a relevância das clivagens estruturantes de nossa sociedade, tais como a racial, de gênero e classe. A importância deste debate se comprova quando nos damos conta de quanto tempo levou para que as cotas raciais e a regulação do trabalho das domésticas fossem aprovadas. Quem sabe daqui a uns 50 anos, com programas consistentes e sucessivos de políticas de ação afirmativa para negros, indígenas e todos os segmentos sociais que vivenciam processos diferenciados de exclusão, tenhamos outro cenário? Um cenário em que médicos negros e negras poderão ser vistos e tratados por seus pares com total naturalidade e respeito e cobrados a partir de critérios exclusivamente profissionais.

*Marcio André dos Santos, Sheila Dias e Pablo Mattos são acadêmicos atuantes no Brasil na luta contra o racismo.
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